24 a 26 de Outubro de 2023. Tânia Pinto, de 32 anos, estava grávida de oito meses. Na terça-feira, 24, é informada numa consulta de rotina no Hospital Beatriz Ângelo que a filha não tinha batimentos cardíacos. Foi-lhe então administrada medicação para induzir o parto. Na quarta-feira, 25, Tânia deslocou-se até ao Hospital Beatriz Ângelo para realizar o parto, mas acabou por voltar para casa com o feto morto na barriga por não haver vaga nem pessoal para o realizar. Segundo o casal, os funcionários do hospital informaram que existiam casos mais urgentes e que teriam de voltar no dia seguinte ou permanecer naquela unidade “com outras mulheres grávidas ou recém-mães com os bebés”. Tânia optou voltar para casa com as dores de um parto induzido. A 26 o parto terá tido finalmente lugar.

Foi preciso uma mulher grávida andar durante dois dias entre casa e o hospital em trabalho de parto dum nado-morto para que se começassem a fazer perguntas sobre o que chamamos procedimentos habituais nestes casos. Por exemplo, será aceitável que uma mulher em trabalho de parto de um bebé morto fique internada numa enfermaria com mulheres que acabaram de ser mães e com os respectivos bebés? Aceitável ou não, acontece.

Há uns anos isto seria um escândalo. Agora é a rotina. Uma fatalidade. Saber qual o bloco de partos que está a funcionar na zona tornou-se um quebra-cabeças ou mesmo numa corrida de obstáculos. Entrámos em 2023 a fazer contas às centenas de quilómetros feitos por grávidas que apenas queriam ter acesso a um bloco de partos. Ora era uma grávida do Seixal que era levada para o Hospital Distrital de Santarém, a 100 quilómetros de distância. Mas que uma vez chegada a Santarém, e porque bloco de partos ia entrar em contingência pouco depois, por falta de anestesista, entrava novamente numa ambulância, desta vez com destino às Caldas da Rainha, a mais de 50 quilómetros de distância. Tudo somado são 150 km, mesmo assim menos que os 200 km feitos por outra grávida de Torres Vedras logo no início deste ano para conseguir ter uma consulta de urgência.

Este fim de semana estão fechadas as urgências de obstetrícia de Braga, Santarém, Vila Franca de Xira, Setúbal e Santa Maria em Lisboa. Já a urgência do Amadora-Sintra não só encerrou este fim-de-semana como vai manter-se fechada por mais cinco dias. Para o próximo há que actualizar estas informações. Manda a precaução que se evitem as mudanças de turno, as horas em que os serviços entram em contingência…

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Quantas manifestações foram convocadas para protestar por estes sucessivos atentados contra as mulheres? Quantas vagas de indignação aconteceram? Não duvido que há alguns anos, o ministro da Saúde, sobretudo se não integrasse um governo de esquerda, perante casos como estes sentir-se-ia obrigado a dar explicações. Também tenho a certeza que o país estaria coberto de cartazes a chamar assassinos aos membros do governo. Mas como estamos com governos socialistas, há oito anos a contestação deu lugar a um processo de degradação do quotidiano envolto numa retórica que garante o inverso: nascer em Segurança no SNS, anuncia o Governo enquanto a insegurança aumenta para quem procura o SNS.  Não nascer no SNS  está a tornar-se uma tendência: no primeiro semestre de 2023, nos hospitais de Lisboa e Vale do Tejo, os partos nos privados aumentaram 20% em relação ao ano passado, no público também se registou um aumento mas apenas de 3%.

O fatalismo com que reagimos actualmente a tudo isto contrasta vivamente com a forma apaixonada com que num passado recente vivíamos o que designávamos como saúde materno-infantil. E contrasta ainda mais com a comoção com que actualmente se reage aos gestos machistas ou apresentados como tal, desde que praticados por um machista conveniente. (A questão da conveniência é fundamental e só ela explica que nos indignemos por causa do beijo que um dirigente desportivo espanhol deu a uma jogadora de futebol e simultaneamente se fechem os olhos perante a perda de direitos das mulheres nas competições desportivas por causa dos atletas transexuais.)

E, aqui, chego ao que me parece ser outro factor indutor da placidez com que vivemos a regressão no atendimento às mulheres grávidas: a grávida tornou-se uma espécie de arcaísmo. Quase um resquício doutras eras, como o apêndice. No tempo da ditadura do género, do eu sou o que sinto que sou, das pesso@s, as grávidas mostram que a realidade biológica não se compadece com tais efabulações. Cada grávida lembra que só as mulheres engravidam, que só as mulheres amamentam, que só as mulheres são mães.

A degradação do SNS, o fecho rotativo das urgências, a descoordenação entre as ambulâncias e os hospitais não afectam a todos por igual. As mulheres grávidas contam-se entre as primeiras vítimas do retrocesso civilizacional que estamos a viver no SNS. Uma grávida não é uma pesso@ que anda por aí com um filho na barriga, de urgência em urgência à espera que lhe digam que pode ficar. Uma grávida  é uma mulher. E as mulheres e os seus assuntos têm de voltar a ser discutidos e deixar de ser sacrificados a agendas do momento.