Autopsicografia”, publicado em 1932, é provavelmente o poema mais conhecido de Fernando Pessoa (1888-1935), e um dos poemas mais conhecidos de qualquer português escolarizado. São três quadras em versos de sete sílabas, cuja música faz lembrar o tipo de coisa que encontraríamos espetada num manjerico. Este aspecto pode tê-lo tornado fácil de memorizar; e pode ter-nos feito saltar por cima do título, que tem um ar grego de filosofia que pode assustar.

Há todavia um mistério: quem o conhece consegue lembrar-se quando muito da primeira quadra; e quem o tenta explicar explica no máximo o primeiro verso: “O poeta é um fingidor.” O resto, como diz outro poema de Pessoa, “sobe em mim como uma náusea.” As complicações começam com o fim da primeira quadra (“Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”): entramos no vasto território selvagem e desértico só explorado pelos exames de português. A pergunta que fazemos nessas alturas de aflição é: ‘O que é que ele quis dizer com isto?’. Pode não ser despropositado fingir sentimentos que não temos; mas que razão teríamos para fingir sentimentos que já temos? É como fingir que temos uma piscina na nossa casa com piscina.

Nada disto explica que ninguém se lembre bem das outras duas quadras do poema. Na segunda, Pessoa descreve aquilo que a maior parte das pessoas acha acerca de poemas: que o que os poetas querem dizer é diferente daquilo que as pessoas normais querem dizer, e que aquilo que os poetas sentem é diferente daquilo que os civis sentem. Os leitores gostam sempre de imaginar a dor “que eles não têm.” Pessoa parece ter reticências relativamente à inclinação para imaginar que a vida dos outros é diferente da nossa.

Da terceira quadra ainda menos pessoas se lembram, e só alguns muito vagamente de que há por lá um “comboio de corda / que se chama coração.” No verso anterior já nos fora comunicado o motivo para a referência ferroviária: Pessoa está a dizer que o coração serve para “entreter a razão.” O argumento parece assim completo: o motivo para fingir dores (e para o trocadilho surdo entre fingir dores e “fingidor”) é suscitar a curiosidade do público; o objectivo dessa actividade é o entretenimento sentimental da razão; e os poemas são um meio para isso.

No entanto, quem lê poemas já normalmente calcula que seja esse o caso. Pessoa não está a escrever para nos impressionar com teorias novas sobre o coração ou sobre a poesia; está a repetir o que acha que todos acham, e a recitar num tom de troça suave ou até de apreço uma concepção muito partilhada de poesia. Foi talvez por isso que escolheu para entreter a nossa razão versos de sete sílabas, que são familiares a qualquer pessoa cuja cultura filosófica tenha sido adquirida numa noite de Santo António.

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