As lojas fecham, as autoestradas esvaziam-se, as pessoas ficam em casa. Mas há uma coisa que não fecha, que não se esvazia nem fica em casa: a política. Sim, ao contrário da economia ou da educação, a política parece imune ao vírus. As coisas podem fazer-se de maneira diferente, mas fazem-se, e toda a gente pensa nelas. É assim que, em Portugal, perguntamos se o presidente da república vai recuperar da sua quarentena inicial, ou se António Costa se comprometeu com o “não falta nada”. Lá por fora, não é diferente. Nos EUA, basta dar uma vista de olhos pelas colunas de opinião: a grande questão continua a ser Trump. Há um par de meses, julgava-se que a economia o ia manter na Casa Branca. Agora, há quem espere que a recessão lhe possa tirar esse  trunfo. Quase se fica convencido de que para a esquerda americana, se o vírus impedir um segundo mandato de Trump, não terá sido uma coisa totalmente má. Para Henrique IV, Paris valia uma missa; para os Democratas americanos, a presidência dos EUA parece valer uma epidemia.

A guerra das ideologias também não foi de quarentena. Na imprensa e nas redes sociais, o vírus tem sido convidado a militar nas mais variadas causas. Os governos fizeram parar as economias para conter a infecção. Que fazer a seguir?  Baixar impostos, dizem uns. Nacionalizar, dizem outros. Nos EUA, os Democratas ameaçaram bloquear a ajuda à economia se fosse demasiado favorável às empresas. A questão é sempre a mesma: menos Estado, ou mais Estado? Na União Europeia, o problema é agora o que já era há dez anos: deve o norte dar mais dinheiro ao sul, ou não? O vírus que nos dizem que vai mudar o mundo não nos fez, por enquanto, mudar de discussões.

As questões ditas “práticas” não estão, só por isso, politicamente menos carregadas. Nova Iorque, segundo o seu governador, tem 4000 ventiladores e precisa de mais 30 000. A ideia, por isso, é demorar a infecção, até a capacidade ser maior. Mas para atrasar a infecção, é preciso parar a economia. Até agora, poucos governos quiseram passar por complacentes. Quase só Bolsonaro no Brasil ou, à esquerda, López Obrador no México, contestaram um encerramento total. Admite-se, porém, que as quarentenas possam durar ou ser recorrentes até à descoberta e aplicação da vacina. Haverá economia no fim disto tudo? É provável que, nos bastidores, haja mais governos a vacilar, sem saber o que temer mais: o número de infectados hoje, ou o número de desempregados amanhã? Sim, há a ciência, mas há também e sempre a política: a escolha, a decisão, o risco.

A ideia de que é possível suspender a política, como se fecham os teatros ou as barbearias, é uma ilusão. Nem em Maio de 1940, em guerra com Hitler, a elite política inglesa deixou de divergir e de conspirar: foi aliás assim que Churchill, depois de uma vida de insucessos, tomou conta do governo. Mas a política não é simplesmente um mau hábito. A sua suspensão, se não fosse uma ilusão, seria um erro. Por duas razões. Primeiro, porque o escrutínio e o debate, por mais morosos e incómodos, ainda são os melhores meios de que a humanidade dispõe para limitar erros. Depois, porque sabemos que momentos como os actuais, de incerteza e abalo, foram frequentemente cruciais no enquadramento ideológico das sociedades. Sem o choque da Grande Depressão de 1929, talvez as ideias a que chamamos “keynesianas” nunca se tivessem tornado tão atraentes. Da mesma maneira, sem o abalo da Grande Inflação de 1973, é também provável que as ideias que conhecemos como “neo-liberais” nunca tivessem tido tanta influência. Não esperem, por isso, que a política entre em quarentena. Esta é uma emergência, mas é também — por mais que isso choque as boas almas — uma oportunidade para as ideologias e para as carreiras de quem disputa o poder. O homem é sempre um animal político. Mesmo quando está doente.

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