Não passa semana sem que, no comentário político, alguém lamente que se dedique tanta atenção ao Chega — seja porque a cobertura mediática beneficiaria o partido de André Ventura, seja porque esse foco afastaria a nossa atenção de temas realmente mais importantes. E, assim, gerou-se uma espécie de consenso de que, no debate público e político, é necessário aprender a lidar com o populismo do Chega. Afinal, devemos ignorá-lo, responder-lhe, censurá-lo ou integrá-lo? Ontem, num artigo muito interessante, Jorge Fernandes olhou para a questão a partir de experiências europeias com partidos de direita radical, deixando a sugestão de que devemos deixar André Ventura a falar sozinho.

Ora, eu acho que a boa sugestão de Jorge Fernandes vai cair em saco roto. Porquê? Porque o ponto de partida deste debate (o de não se saber como lidar com o Chega) repousa num equívoco: a esquerda sabe perfeitamente como lidar com o Chega. E o que fez a esquerda? Convidou André Ventura para subir ao palco, exibiu as suas propostas e encaixou o Chega no coração da sua estratégia para mobilizar eleitores e se preservar no poder.

No meio do ruído diário que marca o debate político, seria um erro de análise acreditar que a esquerda desgosta do partido de André Ventura. Claro, é isso que os protagonistas da esquerda partidária dizem — até prometem encetar esforços para o anular ou proibir. E, claro, há genuíno desprezo pelas propostas ou tomadas de posição do Chega. Mas, sentados à mesa de trabalho, o que socialistas, bloquistas e comunistas segredam entre si é precisamente o contrário: quanto mais forte estiver o Chega, mais intensa será a mobilização do eleitorado à esquerda, ao ritmo da velha estratégia do “combate anti-fascista”, com vista a impedir a direita de governar. É um jogo do gato e do rato benéfico para ambas as partes — seja para quem persegue, seja para quem se vitimiza e se diz perseguido.

De Freitas do Amaral a Francisco Sá Carneiro, de Pedro Passos Coelho a Paulo Portas, a esquerda sempre se mobilizou qualificando os adversários de fascistas, “nazizinhos”, “neoliberais”, “amigos da troika” ou simplesmente de “direita racista”. Tornou-se a sua raison d’être. Até ao momento em que o truque retórico e a estratégia que nele assentava se gastaram — ninguém com juízo levava a sério tais qualificações para líderes do PSD ou CDS-PP. O aparecimento do Chega resolveu o bloqueio: agora há mesmo uma direita assumidamente radical, à qual muitos dos piores qualificativos se ajustam. Há poucos anos, o perigo da ascensão da direita anti-democrática era uma caricatura discursiva risível, mas agora André Ventura deu-lhe um rosto real e criou uma urgência para o eleitorado de esquerda bloquear governos do PSD (nos quais o Chega, dada a sua dimensão parlamentar, poderia exercer influência).

Ou seja, apesar de contraintuitivo, o Chega e o PS são hoje os maiores aliados — ambos ganham com a afirmação eleitoral do Chega e com o foco do debate político nas propostas da direita radical. À falta de melhor, até no BE a estratégia foi adoptada. No discurso da noite eleitoral, após uma estrondosa derrota, Catarina Martins não hesitou em indicar o combate ao grupo parlamentar do Chega como uma das prioridades do BE para a legislatura. Disse-o repetidamente e sempre sob aplausos entusiásticos. Ficou claro: para tentar recuperar a sua relevância, o BE será o dedo acusador do fascismo sentado no parlamento.

Quando se percebeu que o Chega seria o terceiro maior partido no parlamento, André Ventura gritou bem alto “António Costa, eu vou atrás de ti”. Se lhe tivesse respondido, o líder do PS poderia ter dito “André Ventura, atrás de ti já estou eu”. Porque, efectivamente, é isso que estamos a observar: uma perseguição que favorece ambos. O Chega continua a insuflar-se para fazer de conta que constitui uma ameaça política para a esquerda, enquanto o PS explora esse faz-de-conta para exibir o Chega como argumento para se impedir a direita de governar. No final, quem perde? O PSD, entalado dos dois lados. Ultrapassar este bloqueio é o grande desafio do próximo líder do maior partido à direita.

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