Faço parte de uma família numerosa de classe média, sem formação superior, que repetia muitas vezes que o dinheiro não cai das árvores. Que só se consegue com muito trabalho e que, portanto, ele custa a ganhar. Também se comentava à mesa sobre a vida dos outros que iam bem, reforçando que “o dinheiro abre todas as portas”. Ou sobre a nossa própria vida “ruidosa”, justificando as discussões permanentes com o ditado “numa casa em que não há pão todos ralham e ninguém tem razão”.

A decisão de ser psicóloga nunca foi muito valorizada senão apenas porque ficaria com um curso superior. No restante, nunca me perguntavam sobre trabalhos de casa ou sobre a escola, pois o que importava era que as tarefas domésticas estivessem feitas e que os meus pais não fossem chamados à escola por motivos que envergonhassem. O meu pai trabalhava na indústria pesada e a minha mãe atendia ao balcão. Vivi até aos sete anos na casa dos meus avós, pois já na altura demorou para termos possibilidade de empréstimo bancário e, com isso, acesso a uma casa “própria”.

A realidade económica de muitas famílias portuguesas não é tão boa como esta que vos descrevi. É, frequentemente, uma luta silenciosa e desigual. Silenciosa, mas muito viva de conflitos internos. Ora porque fomos socialmente treinados para não falar de dinheiro ou dos problemas. Ora porque se procura manter uma certa aparência de vida para atender às expectativas pessoais ou às dos outros.

Este silêncio pode trazer solidão, isolamento e inibição para procurar apoio e respostas sociais. Desigual porque as capacidades, recursos e redes de apoio para lidar com os constrangimentos ou perdas económicas não estão distribuídas igualmente na sociedade. Pessoas com menos recursos socioeconómicos enfrentam desafios maiores.

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A escassez económica e financeira pode transformar-se numa luta diária intensa por recursos básicos e oportunidades. Tal qual um estado de guerra, pode causar stress crónico, ansiedade, depressão ou outros problemas de saúde mental.

Os dias que vivemos são propícios a ansiedade financeira. Os preços nos supermercados a subir. A dificuldade de acesso a um trabalho (digno) e à habitação, com um enorme desfasamento entre as rendas das casas e os salários dos portugueses. Vive-se um novo tipo de exclusão: de oportunidades. Até ao ponto em que as manifestações de carência e de sofrimento humano são ignoradas ou normalizadas.

Em casa, vem a insónia e a preocupação constante sobre como sustentar a família, associada à culpa por não poder proporcionar aos filhos um presente digno e um futuro esperançoso. O tempo é passado a procurar trabalho ou a acumular empregos. As despesas acumulam-se. As poupanças não existiam ou já se foram. Os comportamentos de pais e filhos tornam-se mais erráticos, a capacidade para tomar decisões (simples do dia-a-dia) ou resolver problemas (diários) fica afetada e sucedem-se episódios de ansiedade ou conflitos. A família sente-se paralisada. Se antes era mais unida e comunicativa, agora vive num ciclo de stress e preocupação. A saúde mental e o bem-estar de todos são afetados. Esta é a realidade de muitas famílias que enfrentam ansiedade financeira.

A relação entre perda económica, saúde mental e capacidade de resolução de problemas financeiros está intrinsecamente interligada. A perda económica pode deteriorar a saúde mental, o que por sua vez prejudica a capacidade de lidar eficazmente com os problemas financeiros. E isso leva a mais stress financeiro e a uma degradação da saúde mental.

O que pode ajudar a quebrar este ciclo? Há, por um lado, a resiliência individual. Algumas pessoas conseguem desenvolver competências de gestão financeira mais robustas como resultado das suas experiências menos positivas, tornando-se mais preparadas para lidar com problemas financeiros no futuro. Atitudes como otimismo, determinação e uma perspetiva proativa na procura de apoio social podem influenciar positivamente, tanto a saúde mental, quanto a capacidade de resolver problemas financeiros.

Mas o otimismo de cada um não basta. São necessárias políticas públicas proativas. Que promovam a diminuição significativa das desigualdades. Que invistam na resiliência das comunidades, antecipando e preparando as pessoas para lidar com as crises futuras. Que disponibilizem redes de apoio adequadas. Que incluam literacia em saúde psicológica e educação financeira. Que invistam no acesso equitativo de todos a cuidados de saúde física, psicológica e bem-estar. E que apostem na prevenção e na promoção. A começar com os mais novos, nas escolas. Nas famílias. Nos ambientes de trabalho. Nas comunidades.

A minha literacia em saúde psicológica e em finanças não veio da família nem da escola. A formação em psicologia e, mais tarde, as exigências das minhas funções no trabalho assim me conduziram. Bem como a possibilidade de procurar ajuda especializada nos momentos em que mais precisei. Confesso que foi o melhor investimento da minha vida. Por isso defendo veementemente que ninguém pode ser deixado para trás no acesso à saúde e ao bem-estar.

Sofia Ramalho é psicóloga, especialista em Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações e em Psicologia da Educação. Membro do Conselho Consultivo do Conselho Nacional de Saúde Mental e do Conselho Consultivo das Academias Gulbenkian do Conhecimento, é vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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