Nunca se falou tanto da excelência do serviço, da importância do serviço ao cliente, de liderar pelo serviço e, ao mesmo tempo, são cada vez mais raras as atitudes genuínas de serviço. Quando nos toca servir, sempre que possível, delegamos a tarefa. Ou então, o serviço tornou-se um “remendo” para vidas inconsistentes.
Vem isto a propósito da iniciativa da Fundação Maria Beatriz Lopes da Cunha de juntar diversos convidados numa nova reflexão sobre a frase inaugural do pontificado do Papa Francisco, “não esqueçamos jamais que o verdadeiro poder é o serviço”.
Participei como moderadora em dois dos debates que se realizaram, um em Lisboa e outro no Porto, e resumo a ideia forte que dos dois saiu do seguinte modo: o serviço não é tanto algo que se faz, quanto a atitude que se tem diante do que se faz, ou seja, tem tudo a ver com o sentido que damos às nossas relações.
Ora, numa cultura como a nossa, que contrapõe mandar e servir, poder e obedecer, e que exalta até ao extremo a autonomia, acabamos por desenvolver uma visão caricatural do serviço pela qual este é visto como uma forma de dependência que não dignifica (e por isso é não desejável) ou, no extremo oposto, como algo exemplar, desde que seja um voluntariado em África ou com os refugiados.
Mas, como destacou Marta Mendonça (doutorada em Filosofia, professora auxiliar na Universidade Nova), o serviço é uma forma de relação que só os seres humanos podem ter, não é qualquer coisa que possamos dispensar como não digno de nós, como não-nosso. A propósito disto, a oradora perguntava-se por que é que no perfil do aluno à saída do ensino secundário se insiste tanto na ideia da autonomia e não se insiste mais em ideias como a da cooperação ou da confiança recíproca. E de facto, hoje é muito comum ouvir pessoas afirmar “eu não quero depender de ninguém”.
A ideia de que servir faz parte de nós e nos engrandece é mais perceptível quando se fala de voluntariado, como bem explicou Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome. São milhares os voluntários que se apresentam continuamente na sede, na freguesia lisboeta de Alcântara, e milhares as motivações que os levam a servir os outros gratuitamente. Isabel Jonet descreveu o seguinte: chegam sem grande espírito de serviço, saem a saber o que é servir. O que mudou foi a atitude.
Passamos para a vida familiar e ficamos com uma noção semelhante. A visão dada pelo casal Francisco e Inês Vilhena da Cunha, pais de oito filhos, é poderosa: o serviço é “a cola” que une a família afirmaram, tendo depois evidenciado que a família é um dos lugares mais desafiantes para o serviço porque obriga a um permanente estar atento, estar disponível para os outros, que não se compadece com independências.
E que dizer do mundo do trabalho? Há nele lugar para o serviço? Quem respondeu foi a reconhecida financial advisor Domitília dos Santos, que fez questão de contrariar a ideia da autonomia. Esta mulher que trabalha no centro financeiro do mundo, Wall Street, não se cansou de repetir que vive para servir os outros, para enriquecer (não só no sentido financeiro) a vida dos outros e que rejeita com todas as letras a ideia de que existem pessoas self made. O trabalho pode tornar-se um serviço quando gera impactos para lá do transitório, defendeu.
Desta breve reflexão se percebe, como concluía Marta Mendonça, que temos diante de nós, a cada momento, a escolha de servir, ou não, os outros. E se os servimos, estamos a dar-lhes aquilo que só uma pessoa pode dar e estamos a receber aquilo que só outra pessoa nos pode dar: tempo, atenção, solicitude, disponibilidade.
Aquilo que uma máquina nunca poderá fazer.
E é aqui que quero chegar ao falar desta iniciativa: agradecer a oportunidade de redescobrir que, e cito de novo a Marta Mendonça, nós somos desde o nascimento até à morte seres que dão algo aos outros e recebem algo dos outros; seres dependentes, no sentido de que precisamos uns dos outros.
É bom lembrarmo-nos disto todos os dias.
Jornalista, professora de Sociologia no ensino secundário