A maldita da globalização será devida à internet ou aos voos low-cost? Ou será antes consequência do GATT e do comércio livre? A globalização cultural que, tal como o turismo, prostitui os povos e delapida o património, terá surgido com Hollywood ou com a Sorbonne? É um epifenómeno do capitalismo ou será que o precede?

Vejamos um exemplo concreto. Um livro escrito em português no Japão por um italiano, depois de ter consultado uma comissão de especialistas japoneses, que é enviado para Roma para aprovação, traduzido para latim, e impresso em Lisboa para exportação para a China e Japão será mais de associar ao século vinte ou ao século dezasseis? Não fossem mencionados “latim” e “Roma” e este processo seria certamente identificado como contemporâneo, pertencendo à era da União Postal Universal e dos voos intercontinentais. E se considerarmos ainda que, entre a redação inicial e a distribuição do produto impresso em Macau e Nagasaki, decorreram apenas oito anos, apreciaremos melhor a eficiência da rede logística global já existente no século dezasseis. Não, a globalização não começou ontem, nem é devida ao capitalismo financeiro contemporâneo.

O livro em causa é o Catechismus Christianae Fidei, de autoria de Alexandro Valignano (1536—1606), impresso em Lisboa por António Ribeiro e Manuel da Lira, entre Janeiro e Fevereiro de 1586, uma obra importantíssima na historia da cultura mundial. Uma das razões da sua relevância é de ter servido, durante mais de vinte anos, como um dos textos base lecionados nos colégios jesuítas em Funai, Katsusa, Amasaki, Nagasaki e Macau. De notar que estes colégios, instituições de ensino superior, já tinham alcançado um grau de internacionalização do corpo estudantil que só agora, a custo, as Universidades nacionais estão a conseguir replicar com o apoio de programas de mobilidade internacional como o Erasmus. Os estudantes desses colégios não eram só japoneses e chineses, mas também portugueses e polacos, vietnamitas e indianos. Cristóvão Ferreira (1580—1650), de fama cinematográfica recente, não foi certamente mais que um, entre algumas centenas, dos alunos que terá estudado este Catechismus, no decurso da sua formação académica, juntamente com outros futuros missionários, filhos de samurai e de literati asiáticos.

Outra razão para importância cultural a nível global desta obra, é ter sido, apesar do seu título, o primeiro livro impresso numa língua ocidental a expor sistematicamente os princípios básicos do budismo e xintoísmo. Embora quase toda a edição de 1586 tenha sido exportada para o Extremo Oriente, António Possevino (1533—1611) voltou a reedita-la em Roma em 1593 e, tal foi o seu sucesso, de novo em 1603. Através destas segunda e terceira edições ela difundiu-se por toda a Europa e constituiu a primeira fonte de informação sobre as religiões japonesas durante várias gerações de filósofos, desde Pierre Bayle (1647—1706) até Denis Diderot (1713—1784), tendo contribuído decisivamente para a formação da imagem da urphilosophie pelos iluministas.

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Ainda antes da edição de Possevino, o Catechismus foi também traduzido para japonês. Não há evidência conclusiva que nos permita dizer que este tenha sido também impresso, mas não há que duvidar que a versão nipónica teve uma vasta circulação, ainda que manuscrita. Se nenhum exemplar nos chegou até hoje é porque todos os livros e manuscritos que mencionavam a religião cristã foram destruídos a seguir à proscrição do cristianismo, em 1614. O cuidado foi tão minucioso, como as coisas costumam ser no Japão, que bastava uma obra referir só o cristianismo, não sendo necessário sequer dizer que coisa isso era, para ser eliminada. Por exemplo, as cópias de uma popular obra de matemática escrita na China por Li Zhizao 李之藻 (1565—1630), que mencionava no prefácio que algumas inovações (matemáticas) tinham sido introduzidas na China pelos Jesuítas, foram então todas destruídas. Assim não é de espantar que o único exemplar que sobreviveu da versão japonesa de quinhentos do Catechismus foi encontrado, não no Japão, mas em Évora, num biombo no museu da cidade. Para reforçar a tela dos biombos era então usual os artesãos usarem papel japonês. No biombo de Évora foi usado papel reciclado que, veio-se a descobrir, continham dois conjuntos de documentos importantes: um era parte considerável da versão japonesa desta obra de Valignano; o outro eram papeis pessoais de Ai Ryosa Simão 安威了佐 (floresceu no final do séc. 16), o secretário do taikō Toyotomi Hideyoshi 豊臣秀吉 (1537—1598).

Mesmo a edição latina impressa em Lisboa era considerada raríssima, só sendo conhecidos dois exemplares até há poucos anos, o que é natural, atendendo a que se supõe que quase toda a edição tinha sido destinada ao Japão. Um desses exemplares tinha sido oferta da parte do autor ao arcebispo de Évora, D. Teotónio de Bragança (1530—1602), que mais tarde o haveria de doar à Cartuxa de Évora. Os pobres dos cartuxos, no seu obscurantismo, não usaram o livro para aquecer a sopa, e conservaram-no em bom estado durante mais de dois séculos até que, com a supressão das ordens religiosas no século dezanove, o Estado português lhes surripiou tudo o que tinham, Catechismus Christianae Fidei incluído. O espólio bibliográfico da Cartuxa passou então para o recém-fundado Lyceu Nacional, hoje Escola Secundária Passos Manuel. O grande orgulho desta ilustre escola pública, e principal motivo da sua fama internacional, são os seus ratos, e a sua contribuição para a divulgação mundial do nosso património cultural, servindo como importante fonte abastecedora do mercado negro internacional de livros raros. Por motivos difíceis de perceber, este exemplar do Catechismus sobreviveu no Passos de Manuel até pelo menos 1972, quando a Universidade de Tenri obteve autorização para o reproduzir numa edição limitada, e numerada, de 200 exemplares. Menos sorte tiveram os autores desta peça que, após insistentes rogos à direção da Escola Secundária durante o ano escolar 2016-2017, só obtiveram um lacónico mail a dizer que, por motivo de falta de pessoal, não lhes era possível mostrar o livro. Apenas mais um caso em que a cultura cai sob o acutilante machado da política orçamental do XX Governo Constitucional? Mais lamentável, os múltiplos pedidos de confirmação de que a Passos Manuel ainda se encontra na posse deste valiosíssimo exemplar simplesmente não foram respondidos.

No entanto, investigação conduzida pelos autores, no âmbito do projeto de tradução e publicação desta obra em português, levou à identificação de mais três exemplares extantes do Catechismus. Um deles tinha sido enviado por Pedro Morejon (1562—1639), um jesuíta que acompanhou, em 1586, o grosso da recém-impressa edição do Catechismus na sua viagem de Lisboa para Macau e Nagasaki, destinado “para el hermano Diego Viguees de la Comapañía de Jesus de Salamanca”, e que a Biblioteca da Universidade desta cidade conservou fiel e conscienciosamente até hoje.

Outro tinha sido destinado ao Colégio de Campolide. Este exemplar, depois da supressão dos Jesuítas, passou primeiro para o Arquivo das Congregações, e depois para a Biblioteca Municipal de Lisboa e encontra-se hoje nos Paços do Conselho, numa sala do piso térreo onde se costumam realizar banquetes oficiais e outras festarolas públicas. Note-se que esta observação factual não pretende constituir qualquer censura a como a CML trata o seu valioso espólio bibliográfico. Se houvesse alguma crítica a fazer seria ao facto de este exemplar, juntamente com inúmeros outros livros multicentenários, ter sido guardado, durante grande parte da década de 1990, num contentor camarário, à beira Tejo, à chuva e ao sol e com amplitudes térmicas que, lá dentro, ultrapassariam na calma os cem graus centígrados. No entanto, verdade se diga, não temos a certeza que o mau estado de conservação do livro, com as suas manchas de humidade e folhas carcomidas, seja devido a este esmerado tratamento do património municipal.

Afinal, se este exemplar não tivesse sido apreendido aos Jesuítas, em que estado estaria hoje? E se o da Cartuxa de Évora não tivesse sido confiscado aos frades e levado para Lisboa, que investigador o poderia consultar? É do Estado “a tarefa fundamental” de “proteger e valorizar o património cultural do povo português” (CRP, art. 9.º, e)). Proteger de quê? Dos investigadores curiosos, do obscurantismo dos religiosos e da ganância dos privados. Valorizar como? Não dando acesso ao público, conservando-o em condições ambientais extremas e permitindo que ratos o monetizem nos mercados internacionais.

Uma última palavra de aviso. A tradução portuguesa deste texto, o Catecismo da Fé Cristã, acaba de ser publicada passados 450 anos da edição prínceps, quebrando assim o silêncio a que esta obra se encontrava votada por políticas educativas progressistas que proscreveram o ensino do latim com o objetivo de melhorar a aprendizagem da língua portuguesa que, como todos bem sabemos, deriva do tupi. É um texto escrito no molde escolástico, de leitura difícil e seca, muito ao gosto das academias quinhentistas, e discutindo questões religiosas e morais obscuras. Espera-se, portanto, que não atraia um vasto público. Por outro lado, os especialistas que o lerem, estarão preparados, pela sua formação académica e científica, a lidar com a aridez da forma e com a ortodoxia do conteúdo deste livro. No entanto, o teor de algumas ideias expostas nesta obra é tal que a sua leitura é absolutamente contraindicada para bloquistas, ecologistas e pan-animalistas, e ainda a pessoas alérgicas a um largo espetro de pontos de vista alternativos, desde o conservadorismo ultramontano ao liberalismo da escola austríaca e correntes libertárias contemporâneas; folhear inadvertidamente este livro poderá causar a progressistas sérias perturbações cardíacas, psíquicas e nervosas, podendo chegar, em casos mais graves, a provocar choque anafilático. Recomenda-se, portanto, o uso responsável e moderado desta obra, se possível sob acompanhamento especializado.