Com a falibilidade de um não especialista e os desatinados modos de um amador, partilho três achismos [1], duas dúvidas e uma proposta.

Sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa e Portugal em Alcochete, acho ótimo. Os 50 anos passados não foram demora, mas amadurecimento. O trabalho da Comissão Técnica Independente (CTI) pareceu-me excelente. Atribuir o nome Luís de Camões, genial. Um nome que não cansa e a nossa maior herança

Sobre a linha de Alta Velocidade (AV) de Lisboa ao Porto e a Madrid, acho ótimo. Só peca pelo atraso que a ferrovia leva entre nós. Dizem que os trabalhos estão bem encaminhados do Porto ao Carregado, ainda bem. Esperemos que o resto não tarde. Sobre o Plano Ferroviário Nacional (PFN), todos anseiam por boas notícias, só a questão da bitola [2] atormenta.

Sobre a Terceira Travessia do Tejo (TTT) que assegurará a ligação ferroviária entre o Norte, o Centro, o Sul, a Área Metropolitana de Lisboa (AML) e o Aeroporto, acho ótimo: Nada disto poderia existir isoladamente, não é favor nenhum a ninguém, dependemos uns dos outros e está tudo ligado.

Sobre se esta nova ponte deverá ou não ser bimodal (modos ferroviário e rodoviário), tenho dúvidas. Partilhadas por muitos. Encarar de início ou mais tarde o modo rodoviário, eis a questão. O comboio faz mais falta e a prioridade não é a mesma. Vale a pena repensar o assunto.

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Sobre a localização da TTT no corredor central entre Chelas e Barreiro, crescem as dúvidas. Partilhadas ainda por poucos. Não faltam motivos [3], mas o sublinhado vai para o crescimento das próprias dúvidas. Vale a pena repensar no assunto.

O caso é de tal maneira complexo, incorpora tantas variáveis, envolve tanto dinheiro e afetará a tal ponto as nossas vidas e a nossa terra que aqui deixo a proposta de uma nova Comissão Técnica Independente (CTI) para este assunto da TTT. Missão: Apresentar um quadro das alternativas de localização da nova ponte que melhor sirva o país, a região e as pessoas. Se a anterior CTI correu bem, porque não seguir o exemplo?  Se já assentamos ideias quanto à localização do Aeroporto Luís de Camões, venha de lá essa Ponte Lusíadas! E uma CTI que nos ajude a encontrar o caminho, equiparando-a em sentido. Mandatada por acordo de regime e mobilização da sociedade. Nada menos do que isso. Só fica a faltar um oxalá, para contrabalançar.

Para perceber melhor estas intuições e o sarilho em que estamos metidos, permitam que relembre telegraficamente alguns requisitos da TTT.

  • Servir o novo Aeroporto Luís de Camões (ALC)
  • Servir as linhas de Alta Velocidade (AV) e o Plano Ferroviário Nacional
  • Servir a mobilidade da região reforçando o anel rodoviário á volta do Estuário e as ligações nacionais Norte Sul
  • Conceção e construção da Obra de Arte (bonito nome para pontes…).
  • Ligação à Gare do Oriente, à linha de cintura de Lisboa e à Estação Terminal AV.
  • … (acrescente o leitor, sff, outras imperdoáveis lacunas que encontre. Obrigado.)

A par destes requisitos materiais, esperam-se outros não menos exigentes nos campos financeiro, planeamento, ordenamento do território, etc. Entramos nas áreas da economia e sociedade. Alguns tópicos:

  • Montagem de um esquema financeiro de viabilização da obra e enquadramentos jurídico, contratos, etc.
  • Compaginação com a prioridade ao transporte público, proteção ambiental, (diminuição da poluição, ruído, …) descarbonização e transição energética, etc.
  • Reforço dos Planos de Ordenamento do Território. Articulação com o Arco Ribeirinho na Margem Sul e com o planeamento das regiões e municípios envolvidos
  • Reforço do Porto de Lisboa, facilitando a operacionalidade e manobra de navios. Melhorar a fluidez de mercadorias e passageiros.
  • … (acrescente, por favor, outras imperdoáveis lacunas que encontre. Obrigado.)

Já o leitor se enfastia perante tal listagem ou se entusiasma perante o desafio e ainda faltam referir aspetos cruciais para a TTT ir avante. Refiro-me à política –participação e sociedade. Entramos em zona de águas-vivas que, para nosso bem, não passam duas vezes pelo mesmo sítio [4]. Ora veja:

  • Entendimentos entre governo e oposição, entre governantes e governados. Concertação e consensos. Conciliação de interesses.
  • Coordenação entre o poder central e as autarquias e destas entre si.
  • Comunicação Social. Contributo dos media. Escrutínio a todos os níveis. …
  • Despertar o entusiasmo e aumentar a Participação. Associar a maravilhosa ideia da TTT à união entre portugueses e não a recorrentes guerrilhas…
  • … (acrescente o leitor, sff, outra pertinente lacuna de que se lembre. Obrigado.)

Entretanto, se tudo isto concorre, e de que maneira, para o sucesso da obra, ainda falta referir aquilo que a meu ver é o mais importante. Refiro-me ao campo Da Alma, lá onde procuramos o sentido. Se os números são imprescindíveis, o sentido vem do suplemento de alma que lhes assiste. É na força das ideias que tudo se joga. Não se trata de ouvir filósofos e poetas no lugar dos especialistas, mas de convocar a sabedoria. Para um desenlace feliz, pergunto-me se poderão faltar estes pontos:

  • Valorização da Paisagem. Interação com o Genius Loci (espírito do lugar).
  • Preservação dos valores materiais e imateriais em presença. Património.
  • Visão de conjunto. Coordenação das diversas vertentes, conjugação das artes.
  • Onde buscar e encontrar a harmonia? Quais as ideias com capacidade para fomentar consensos, mobilizar entusiasmo e libertar energias?

Recordo que o propósito deste texto e todas estas questões relacionadas com a TTT não é, por ora, o de defender alguma solução concreta, mas o de propor uma estrutura de missão que dê novo impulso e consistência à nova ponte. Se me estendi na listagem foi para demostrar a plausibilidade da proposta de um grupo para aprofundar a reflexão e impulsionar o processo, como a anterior CTI do aeroporto. Com a competência proporcional ao problema e a isenção adequada ao bem comum. Deixar um alerta e evitar manter enganos por inércia ou indiferença. Para mais quando tantos especialistas vêm alertando para a valente alteração de pressupostos entretanto observada.

Notas complementares – Exemplos de ideias globais a ponderar antes de parcelares

  1. Haver um plano para o Estuário e para a AML não deveria preceder os planos para a ponte? Como defender uma hipótese concreta antes de conhecer a ideia geral onde encaixa? Por maior que seja a nova ponte, o Estuário é ainda mais abrangente e a área metropolitana idem apas. Talvez faça mais sentido submeter a ponte às ideias pretendidas para o Estuário do que este sofrer com as consequências de decisões ao arrepio da sua vocação. Numa cidade com as margens próximas, como o Porto, Paris ou Londres, faz sentido a proliferação das pontes, qual molécula do ADN, mas numa cidade marcada geograficamente pela centralidade de um Estuário como o do Tejo, talvez faça mais sentido preservar incólume o núcleo central celular, reforçando as circulares que o sublinham, em vez de o anular com travessias pelo meio.
  2. Qual tela que nos molda e sobre a qual desenhamos a nossa vida, a Geografia também tem uma palavra a dizer. Tentar descrever a região numa frase ou num desenho de meio minuto, ajuda a captar o essencial. Como descreveria a região de Lisboa? Onde foi parar o centro? Encontrei um bom exemplo em palavras de Ricardo Bak Gordon: “Sintra tem o seu encanto, a Amadora, Almada e Alverca também, mas se procurarmos um elemento comum agregador dificilmente escapamos à atração das águas.”
  3. A somar ao valor patrimonial do Cais das Colunas no Terreiro do Paço cabe lembrar que não existe nada mais parecido com a capa do Novum Organum de Francis Bacon (1561-1626), obra maior de quem é considerado o fundador da ciência moderna. Interessante a escolha do mar e dos navios para ilustrar os horizontes científicos que se abriram a partir de Lisboa. Sinalização do contributo das artes da navegação e cartografia portuguesas – não se chegou lá por acaso – como lembrou Henrique Leitão, citando Pedro Nunes [5].Triste seria desbaratar a largueza de vistas que se alcança a partir do Terreiro do Paço, enxameando não de barcos, que só ficam bem, mas do que quer que seja ao arrepio do seu largo horizonte.

Mas não percamos o Norte, pois para nossa sorte, problemas complexos, fora trabalho e sarilho, também dão para corrigir caminho.

[1] A vontade de acertar / Não evita o errar / E o atrevimento de achar / Convida a discordar.
[2] Bitola Ibéria ou bitola europeia? Queremos chegar aos Pirenéus ou mais longe?

[3] Mantem-se o traçado mais por inércia do que por acerto; a extensão da volta é escusada, o efeito sobre Estuário é incivil e o afluxo ao centro problemático, …

[4] Segundo Heráclito “As águas não passam duas vezes por baixo da mesma ponte”

[5] É manifesto que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes: não se fizeram indo a acertar: mas partiam os nossos mareantes muito instruídos e providos de instrumentos e regras de astrologia e geometria… Pedro Nunes; Tratado em Defesa da Arte de Marear; Lisboa, 1537.