Na biografia de Lyndon Johnson assinada por Robert A. Caro, escrita ao longo de quarenta anos e em cinco volumes, há algo que sobressai: a corrupção e o tráfico de influências não são exclusivos de nenhum país, de nenhuma área política, de nenhum partido, nem necessariamente definidores de uma personalidade na memória cultural de um povo.
O legado de Johnson é brutalmente bipolar: criado numa das regiões mais pobres do Texas, viveu milionário; eleito com a maior percentagem de votos na história moderna das presidenciais, não se recandidatou por atingir uma impopularidade insustentável para qualquer presidente americano; rosto da aprovação dos Civil Rights Acts, foi também o pai da maior catástrofe militar dos EUA no século XX: o Vietname. Chegou à presidência dos Estados Unidos e mandou instalar linhas telefónicas na Sala Oval para dirigir as suas empresas ao mesmo tempo que governava o país. A sua gestão de poder não se devia somente a mestria e autoridade (media uns massivos 192 centímetros de altura), mas ao seu acesso a um mecanismo estruturante da política americana: dinheiro. Ascendeu partidariamente com campanhas financiadas por grupos de construção civil a quem garantia contratos de obras públicas enquanto congressista e senador. José Sócrates, no fim de contas, não inventou nada.
Lyndon B. Johnson morreu há 47 anos, no sítio onde nasceu, a 8 mil quilómetros de Portugal, mas a distância que separa a sua política da nossa é curta. O tempo que estamos a viver persiste em demonstrá-lo. Sócrates até pode ter saído do Partido Socialista, que o socratismo continua bem presente. A audição do ministro das Infraestruturas sobre o futuro da TAP e o favorecimento de um secretário de Estado à empresa de um amigo expuseram-no, ainda que de formas distintas.
O modo quase cinematográfico como Pedro Nuno Santos desfez o modelo de governança da TAP – desenhado por Diogo Lacerda Machado, o conselheiro mais íntimo do primeiro-ministro – é um caso paradigmático de como as decisões do PS na anterior legislatura foram vendidas como vitórias ideológicas que hoje a realidade facilmente desmente. A candidatura de Mário Centeno à presidência do Eurogrupo é outro exemplo, na medida em que Centeno, que ia difundir a “política alternativa da ‘geringonça'” pela Europa fora, acabou como porta-voz dos demais ministros das Finanças, diversas vezes em desacordo com Costa. Mas o que o governo fez com a TAP é mais grave porque não tem só a ver com spin e chico-espertice; tem a ver com dignidade do Estado e dinheiro dos contribuintes.
Podemos ignorar, para facilitar a análise, o facto de Pedro Nuno Santos ter atacado abertamente uma solução para a TAP que foi desenhada pelo amigo mais próximo de António Costa, defendida pelo antecessor de Pedro Nuno no seu ministério, promovida como salvação da companhia e cujo plano estratégico o governo aceitou. Não creio, porém, que possamos ignorar o alerta que Pedro Nuno deixou implícito.
Se o modelo de reversão da privatização tornou o Estado acionista maioritário sem qualquer palavra quanto aos riscos da empresa, é impossível saber que negócios os acionistas privados podem ter feito entre a TAP e outras empresas suas, o que significa que o modelo defendido pelo governo (e criticado pelo ministro) gera um cenário em que uma empresa que representa o Estado serve de plataforma para negócios privados. Independentemente da ideologia de cada um, não há como estar confortável com isto.
Gente que leio e respeito faz uma leitura política do episódio, colocando a visão “mais radical” de Pedro Nuno contra a ala “mais moderada” de Lacerda Machado e António Costa no PS. Ora, a mim não me parece nada radical não querer dinheiro dos contribuintes a patrocinar promiscuidades entre o Estado e investidores privados, como não me parece nada moderado defender um modelo que o permita. Olhando, aliás, para a história recente do Partido Socialista, o homem que simbolizava a moderação acabou a simbolizar igualmente a corrupção.
Importa, admitindo isto, que o parlamento pergunte ao governo: 1. os administradores que representam o Estado na TAP têm conhecimento de algum negócio entre a companhia e outras empresas detidas pelos seus acionistas privados?, 2. os administradores que representam o Estado tiveram, têm ou ponderam ter qualquer relação de interesse alheia à TAP com os seus acionistas privados?, 3. os administradores que representam o Estado na TAP partilham algum interesse além da companhia com esses acionistas privados?, 4. Pedro Nuno Santos mantém a confiança nos dois administradores que representam o Estado e renovaria a sua indicação por parte do governo?, 5. houve desacordos entre o ministro e os administradores indicados pelo Estado, já que um dos administradores concebeu o modelo de governança e acordou o plano estratégico criticados pelo ministro? 6. quem é que o ministro colocaria na comissão executiva, se o Estado tivesse assento nesta? 7. o ministro ficaria no governo se essa decisão fosse tomada pelo primeiro-ministro?, 8. o primeiro-ministro apoia a visão do seu ministro ou a estratégia de Diogo Lacerda Machado, sendo que tal não ficou esclarecido nas suas últimas intervenções sobre a TAP?
Esta semana, com a complacência da maioria da oposição e da maioria da imprensa, vimos como um secretário de Estado pode aproveitar as responsabilidades de uma pandemia para ajudar o negócio de um amigo e ex-sócio sem grandes consequências. Nas próximas semanas, veremos como as divergências internas do governo forçarão a um maior escrutínio na questão TAP. A companhia será, muito provavelmente, a próxima crise política do país. E se alguém falar em comissão de inquérito e a esquerda quiser meter a privatização ao barulho, Rui Rio dirá três palavrinhas mágicas: claro que sim.