Confesso que foi com algum receio que escrevi o título de hoje. Se não incluísse o ponto de interrogação talvez nem o escrevesse, tal seria o medo de melindrar muito boa gente que lê as linhas que escrevo.

Naturalmente, contemplar a hipótese de perda de um bem adquirido, de um certo conforto ou vantagem, não é fácil para ninguém, e se há mudança na era pós-covid que tem trazido qualidade de vida à população ativa portuguesa é a possibilidade de trabalhar a partir de casa. Bom, com sinceridade talvez possamos dizer que esta mudança impacta, fundamentalmente, quem trabalha na capital, onde em dias de chuva (e ainda bem que não chove muitas vezes em Lisboa) e em dias de greve (que já são mais por ano do que os dias de chuva) o tempo que se gasta a atravessar a cidade poderia inspirar uma nova edição do famoso livro de Júlio Verne, “A volta ao Marquês em 80 minutos”. Por aqui, uns foram incorporando escritórios improvisados na sala e no quarto, outros fizeram mesmo as malas e voltaram para a sua terra, aproveitando para viver no interior com um ordenado de Lisboa.

Faço uma curta pausa para incorporar uma reflexão, que talvez venha a ser mal interpretada por alguns, sobre a última frase do paragrafo anterior. Pós-covid temos visto profissionais a abandonar as grandes cidades e a voltar à sua terra de origem com regimes de trabalho remoto, promessas de nómadas digitais a povoar aldeias e vilas e até empresas a olhar de outra forma para o interior, quer para recrutamento quer para a criação de centros de resposta com custos reduzidos. Claro, há outros fatores importantes que contribuem para este fenómeno como a inovação tecnológica e a digitalização, o esforço de autarquias na criação de incubadoras de empresas e de universidades e institutos no desenvolvimento de parcerias estratégicas, mas a nível nacional quando é que Portugal começou a reconhecer estas possibilidades? Arrisco-me a dizer que a pandemia provocada pela COVID-19 poderá vir a fazer mais pelo interior do que os últimos 23 governos.

Têm sido identificadas, ao longo do tempo, relações positivas entre o nível da produtividade das empresas e o trabalho remoto, com alguma literatura a salientar o efeito positivo na motivação e na satisfação dos profissionais, que leva a um aumento na sua produtividade e por consequência, também contribui para a produtividade da organização. É difícil que alguém não reconheça as vantagens para os trabalhadores e outras tantas para as empresas, que aproveitaram o trabalho à distância para reduzir alguns custos operacionais, e podemos ao dia de hoje assumir que os números que materializam um lado negativo desta mudança, ao indicar uma perda de produtividade laboral (com diferentes magnitudes conforme o sector de actividade, tipo de função etc.) são pouco expressivos quando comparados com estudos que apontam o contrário, no entanto, a verdade é que o mercado vai dando pequenos passos na direção contrária.

No ano passado, a Microsoft publicou alguns dados que indicavam a existência de ceticismo por parte das posições de liderança na qualidade do trabalho remoto, e até que quase metade dos gestores não confiavam nos seus funcionários para dar uma resposta de nível superior, quando em teletrabalho. Na altura, estes dados não foram os únicos a apresentar este tipo de desconfiança na qualidade do trabalho remoto. Com a entrada no segundo trimestre de 2023, pudemos assistir a empresas como a Apple, Google, Tesla, Twitter e Amazon a criar políticas de trabalho presencial e ao aparecimento de dados que apontam para uma tendência na redução do tempo em teletrabalho desde 2021 (nos Estados Unidos da América foram mais de 21 milhões a voltar completamente ao trabalho presencial durante 2022).

Se a reticência de líderes e gestores parece não ter ainda diminuído quanto à qualidade do trabalho a partir de casa (o mais provável é que diminua com o tempo) a vontade dos profissionais em manter essa possibilidade também não. Nem mesmo o abrandar da economia, que confere uma maior capacidade negocial aos empregadores, deverá ser suficiente para garantir um regresso total ao escritório, mas sim para um regresso parcial, como vamos assistindo em Portugal. Se o trabalhar a partir de casa a 100% começa a ser “moda do passado”, o modelo híbrido ganha espaço como a solução do presente e, provavelmente, do futuro também.

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