Em 1979, o Papa São João Paulo II visitou pela primeira vez o México. Esta visita levantou questões a todos os níveis, sendo a mais delicada (e considerada um verdadeiro problema constitucional) a de saber como viria o Santo Padre vestido.

A Constituição mexicana de 1917 (ainda hoje em vigor, apesar de já muito alterada) era, mais do que de inspiração, assumidamente anticlerical de corpo e alma (passe-se a contradição), não reconhecendo, por exemplo, qualquer personalidade jurídica às “agrupações religiosas denominadas igrejas”, considerando os ministros de culto como “pessoas que exercem uma profissão” e atribuindo às legislaturas dos estados a faculdade de “determinar, segundo as necessidades locais, o número máximo de ministros dos cultos” (o que dava margem para cada estado considerar que as “necessidades locais” não justificavam sequer a existência de um único sacerdote, determinando por isso a expulsão de todos). Para se exercer o ministério de qualquer culto no México era necessário ser-se mexicano de nascimento e os ministros de culto não podiam criticar em nenhuma circunstância as leis fundamentais do país, as autoridades ou o governo, nem tinham direito de voto ou de associação com fins políticos. Os membros do clero estavam proibidos de ensinar em qualquer instituição escolar, ainda que fosse privada, as propriedades da Igreja foram postas à disposição do Estado mexicano, as ordens religiosas abolidas e vedado o uso de vestes clericais fora das igrejas (o melhor panfleto deste negríssimo período é a experiência contada em primeira mão por Graham Greene, em The Power and the Glory – disponível em edição portuguesa com o título O Poder e a Glória).

Com este cenário tão hostil, não deixa de surpreender, em primeiro lugar, que a viagem de estreia do pontificado de João Paulo II tenha incluído o México no seu itinerário e, em segundo, que essa visita tenha ocorrido nos moldes em que ocorreu. As autoridades mexicanas, tão lisonjeadas como receosas da decisão do Papa em visitar o seu país, vincaram à Santa Sé as normas constitucionais vigentes e convidaram João Paulo II a vestir-se civilmente durante toda a estadia, sempre que não estivesse a oficiar em actos de culto. Contudo, o Santo Padre foi peremptório em afirmar que visitaria o México com as suas vestes talares: batina, faixa e solidéu brancos e cruz peitoral à vista. Para não se criarem problemas maiores de natureza diplomática (não só com a Santa Sé, mas com todos os países vizinhos latino-americanos, com populações de enorme percentagem católica e sem anticlericalismos semelhantes em vigor), a solução encontrada pelo ministro do Interior, Reyes Herodes (nome curioso!), sob a justificação de não se abrirem velhas feridas entre o Estado e a Igreja Católica, foi a de uma interpretação menos literal da Constituição de 1917. Uma vez que João Paulo II não tinha sido convidado oficialmente pelo governo mexicano, seria considerado como um “turista ilustre” a quem se permitiria, contra as normas constitucionais em vigor, aparecer em público vestido à padre.

Esta não foi a única acrobacia interpretativa, pois os actos de culto estavam proibidos fora das igrejas e ainda assim o Papa celebrou missa a céu aberto em Guadalajara para muitas dezenas de milhares de pessoas. No entanto, não foi aplicada nenhuma coima por se ter considerado que o lugar onde o Santo Padre celebraria, em frente à Basílica de Zapopan, era propriedade da Igreja e não um lugar público. As autoridades nacionais já pouco podiam fazer frente a um povo mexicano eufórico – que, nas palavras de João Paulo II, era “95% católico e 100% guadalupano” – e a 30 mil sacerdotes que voltavam ao uso da batina em público. Até o próprio Presidente José López Portillo, que à chegada do Papa ao México o recebeu sobriamente como “turista ilustre” e não como Chefe de Estado, acabou por lhe pedir que celebrasse missa privada na residência oficial de Los Pinos para satisfazer um especial desejo de sua mãe, abertamente católica, e que muito tinha insistido com o filho para se portar bem com o Santo Padre.

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Hoje parecem-nos tão desarreigadas da realidade estas clássicas perseguições religiosas – como as proibições de culto público ou do uso de vestes clericais (num tempo em que todos se manifestam e se vestem publicamente mais ou menos como querem), que nos podem passar despercebidas outras práticas persecutórias mais subtis a uma das liberdades fundamentais primárias, como é a liberdade religiosa. Veja-se o caso dos Estados Unidos da América.

É muito estranho que tenhamos um presidente norte-americano como Joe Biden, assumindo-se católico, quando o seu programa e as acções levadas a cabo no curto arranque de mandato provaram exactamente o contrário. Na linha do que se antecipavam ser (e foram) as mais imediatas medidas políticas concretizadas pela administração Biden, o Presidente da Conferência Norte-Americana de Bispos Católicos, o Arcebispo de Los Angeles José H. Gomez, fez uma grave chamada de atenção ao presidente recém-eleito na sua declaração inaugural de mandato:

“[…] Trabalhar com o Presidente Biden será único […], visto ser o nosso primeiro presidente em 60 anos a professar a fé católica. Num tempo de secularismo crescente e agressivo na cultura americana, quando os crentes religiosos enfrentam tantos desafios, será refrescante lidar com um Presidente que claramente compreende, de maneira profunda e pessoal, a importância da fé e das instituições religiosas. A piedade e a história pessoal do Sr. Biden, o seu comovente testemunho sobre como a fé lhe trouxe consolo em tempos de escuridão e tragédia, o seu compromisso de longa data com a prioridade do Evangelho para com os pobres – tudo isto é esperançoso e inspirador.

Ao mesmo tempo, como pastores, aos bispos da nação é dado o dever de proclamar o Evangelho em toda a sua verdade e poder, estando ou não em linha com o nosso tempo, mesmo quando esse ensinamento é inconveniente ou quando as verdades do Evangelho contradizem a sociedade e a cultura mais generalizadas. Por isso devo salientar que o nosso novo Presidente se comprometeu a seguir certas políticas que iriam promover males morais e ameaçar a vida e dignidade humanas, mais seriamente nas áreas do aborto, contracepção, casamento e género. De profunda preocupação é a liberdade da Igreja e a liberdade de os crentes viverem de acordo com as suas consciências.

Os nossos compromissos com as questões da sexualidade humana e da família, bem como os nossos compromissos em todas as outras áreas – como abolir a pena de morte ou procurar um sistema de saúde e económico que verdadeiramente sirvam à pessoa humana – são guiados pelo grande mandamento de Cristo de amarmos e sermos solidários com nossos irmãos e irmãs, especialmente os mais vulneráveis.

Para os bispos desta nação, a contínua injustiça do aborto mantém-se como a “primeira prioridade”. Primeira não significa a “única”. Temos profundas preocupações sobre muitas ameaças à vida humana e à dignidade na nossa sociedade. Mas, como ensina o Papa Francisco, não podemos ficar em silêncio quando quase um milhão de vidas não nascidas estão a ser rejeitadas no nosso país, ano após ano, devido ao aborto. […]”

Apesar do muito celeuma causado, o aviso dos bispos norte-americanos foi pertinentíssimo, pois é de facto incompreensível que o “católico” Biden, em mês e meio de presidência, já tenha feito mais pela cultura de morte do que Trump em todo o seu mandato anterior. Das duas uma, ou Biden é católico e estas medidas são aprovadas sem o seu conhecimento – o que ajudaria a corroborar a teoria de que é um autómato comandado pela sua vice-presidente Kamala Harris –, ou não é católico e tem plena consciência do que está a fazer aos Estados Unidos. Daí que a recepção pelos católicos à eleição de Biden tenha sido pouco mais entusiasta do que aquela que teriam com a eleição de um anticlerical convicto na melhor tradição constitucionalista mexicana de 1917.

Mas a medida que causa maior consternação – não que exista algo pior do que atentar contra a vida humana, mas apenas pela sua novidade legal – prende-se com uma ordem executiva assinada há poucas semanas por Biden, com vista à promoção da homossexualidade e da cultura transgénero como foco principal na política externa dos Estados Unidos. Este “Memorandum on Advancing the Human Rights of Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender, Queer, and Intersex Persons Around the World” exige que “todos os departamentos e agências governamentais dos Estados Unidos no estrangeiro garantam que a diplomacia norte-americana e a ajuda estrangeira promovam e protejam os direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros, queer e pessoas intersexo em todo o mundo”. Preocupa especialmente a Secção 4 do Memorando, onde se prevê que “[…] Quando governos estrangeiros se movem para restringir os direitos de pessoas LGBTQI + ou deixem de aplicar as protecções legais em vigor, contribuindo assim para um clima de intolerância, as agências envolvidas no exterior devem considerar as respostas adequadas, incluindo o uso de toda a gama de ferramentas diplomáticas e de assistência e, conforme apropriado, sanções financeiras, restrições de visto e outras acções.”

De aparência inocente, e sob a capa da justa defesa pela dignidade da vida humana em todas as suas circunstâncias, este diploma vai muito mais longe, pois admite que líderes religiosos que falem contra os chamados “direitos de pessoas LGBTQI +” possam não entrar nos Estados Unidos. E para isso calculo que bastará a esses religiosos falarem da família natural, da existência apenas de homens e mulheres, das diferenças e complementaridades dos dois sexos ou citar Génesis 1, 27 (“homem e mulher os criou”). Se um país que tenha liberdade religiosa suficiente para que nele se expressem livremente sacerdotes e ministros de outros cultos sobre fundamentos das suas religiões que potencialmente ofendam essas pessoas não aplicar as “protecções legais em vigor”, a agência norte-americana envolvida nesse país pode arrogar-se no direito de aplicar ela sanções a esses religiosos na forma de coimas ou restrições de entrada em substituição do próprio país. Evidentemente, que serão sempre sanções para o território norte-americano e não uma forma punitiva extraterritorial, mas ainda assim roça o absurdo. Teremos então um rabi, um sacerdote e um imã colocados numa lista negra (admitindo que ainda é possível utilizar tal expressão) como quaisquer oligarcas russos impedidos de entrar nos EUA por participarem em actividades malignas no mundo e promoverem ataques contra as democracias ocidentais?

Curioso será saber como se aferirão esses ataques e ofensas. Através de espias e bufos sentados nos locais de culto, como no III Reich? Ou câmaras de vigilância dentro das igrejas, como na China? Espero que os religiosos de todos os credos tenham a mesma destreza para respostas rápidas do então Arcebispo de Münster e depois Cardeal, o conde Clemens August von Galen, numa situação semelhante. Durante uma homilia, ao protestar pela interferência do Estado alemão na família, na juventude e na educação, foi interrompido por um delator nazi que lhe gritou: “Que direito tem um celibatário, sem mulher ou filhos, de falar sobre os problemas da juventude e do casamento?”. Von Galen respondeu imediatamente: “Jamais tolerarei nesta catedral qualquer crítica ao nosso amado Führer!”.

Precisamos de uma visita urgente do Santo Padre aos Estados Unidos. Ou que a mãe de Joe Biden, à semelhança da do Presidente López Portillo, ainda estivesse viva para lhe puxar as orelhas.