Na maioria dos lares portugueses não há crianças – mas há animais de companhia. Não apenas os tradicionais cães ou gatos, agora também “escorpiões, tarântulas, tucanos, furões, macacos ou chimpanzés, aranhas, lagartos, bichos-de-conta gigantes, formigas, baratas, leões, uma pitão com sete metros ou um elefante-africano”, como revela um livro recente, Cobras, lagartos e baratas: os melhores amigos do homem? Não surpreende por isso que hoje e amanhã o Parlamento vá dedicar duas sessões a debater a nossa relação com os animais. Estará à discussão uma petição, quatro projectos de resolução e mais quatro projectos de lei. Quase todos os partidos vão a jogo, que o tema hoje traz dividendos eleitorais, mas é o PAN que marca a passada e dá o tom. Por isso tomem nota: a nova palavra cujo significado vai ser preciso conhecer é senciência. Mas já lá vamos.
Quem não vive em meios urbanos sabe que o país se debate hoje com um problema: o número de animais errantes aumentou substancialmente desde que entrou em vigor a lei aprovada em 2016 que proíbe o abate de animais abandonados nos canis e centros de recolha. Nada que não se esperasse, nada para que os veterinários não tivessem avisado. Há zonas do país onde as matilhas de cães assilvestrados (cãos que regressaram a um estado semi-selvagem) são um problema de saúde pública e uma ameaça para os agricultores. Ainda o mês passado tivemos notícia de vários ataques de “cães vadios” que mataram dezenas de cabras em quatro freguesias de Viana do Castelo. Se tivessem sido lobos, haveria lugar a indemnização – como foram cães, o prejuízo ficou com os pastores.
O PAN e o Bloco querem aumentar ainda mais a dimensão do actual problema, propondo que os animais vítimas de violência passem a ficar à guarda do Estado – um Estado que já nem tem capacidade para recolher os animais abandonados que devia recolher
O bom senso talvez aconselhasse a revisitar os termos dessa legislação uma vez que, pouco mais de um ano passado sobre a entrada em vigor dessa proibição de abate, é notório que as infraestruturas existentes no país, mesmo tendo sido reforçadas, estão a rebentar pelas costuras e pura e simplesmente não têm capacidade para acolher mais animais.
É isso que o Parlamento vai fazer? Não. Os senhores deputados preparam-se para fazer exactamente o contrário, numa competição por ficarem bem no retrato dos “amigos dos animais”, uma competição onde se uns dizem mata, logo ao lado alguém grita esfola. Dos projectos apresentados o único que escapa ainda é o do PCP, que ao menos se propõe ouvir as autarquias locais e os veterinários antes de avançar com medidas muito radicais.
Já outros, como o PAN e o Bloco, querem aumentar ainda mais a dimensão do actual problema, propondo que os animais vítimas de violência passem também a ficar à guarda do Estado – um Estado que, como vimos, já nem tem sequer capacidade para recolher os animais abandonados que devia recolher. Claro que estes problemas práticos não atrapalham o PAN, que quando se lhe diz que as infraestruturas estão sobrelotadas responde defendendo que então é necessário aumentar as “famílias de acolhimento temporário”, que naturalmente não serão muitas, pois as famílias quando acolhem animais adoptam-nos, não ficam com eles apenas temporariamente.
Não tendo Portugal ainda – ainda… – chegado ao ponto em que o Estado pode impor aos cidadãos o que fazem dentro de suas casas, todos estes projectos terão como inevitável consequência ir ao bolso do contribuinte, pois nesse o Estado já entra com todo o à-vontade. É que mais infraestruturas públicas implicarão sempre mais gasto público, algo que os eleitores das cidades aplaudem mas que irá pesar sobretudo sobre os habitantes das zonas rurais, aquelas onde é maior o problema dos animais errantes.
De resto é bom que o povo do campo esteja atento, pois o PAN também quer introduzir um conjunto de alterações ao Código Penal com o objectivo, e cito, de reforçar “o regime sancionatório aplicável aos animais de companhia e alargando a protecção aos animais sencientes vertebrados”. E é aqui que chegamos ao tal conceito de senciência que referi mais atrás.
Admito que a maior parte dos leitores não conheça sequer a expressão, mas ela remete para a capacidade de ter percepções conscientes, de sentir dor, medo ou ansiedade, uma capacidade que a generalidade dos animais tem, mesmo que em diferentes graus. E têm-na vertebrados ou invertebrados. É um capacidade que deriva de terem sistema sensorial.
E as galinhas lá da aldeia, as que andam livres a picar no chão? Serão enquadráveis numa “actividade legalmente permitida ou autorizada”? Ou vão ter de morrer de velhas?
O PAN, numa longuíssima exposição de motivos do seu projecto-lei (13 densas páginas), defende que “o caminho a seguir no alcance da tutela penal dos crimes contra os animais é o da senciência”, ficando-se para já pelos “animais sencientes vertebrados”. Como está bem de ver a primeira coisa que a lei tem de prever são excepções: se nela matar um “animal senciente vertebrado” é um crime, que iria acontecer aos produtores de carne de bovino ou a quem cria galinhas, porcos ou coelhos? Calma, a lei só se aplica “fora de actividade legalmente permitida ou autorizada”, o que para já nos permite continuar a produzir e a comer carne.
Mas, diabo, e as galinhas lá da aldeia, as que andam livres a picar no chão? Serão enquadráveis numa “actividade legalmente permitida ou autorizada”? Ou vão ter de morrer de velhas? Talvez dependa da sensibilidade do fiscal lá da terra.
Já sabemos por onde estamos a ir. E sabemos porque lemos o programa eleitoral do PAN e lá se previa, por exemplo, “proibir o uso de animais como meio de tração de charretes de carácter lúdico ou turístico” (medida 731) ou “garantir a obrigatoriedade da existência de sombra e a protecção contra as intempéries nos pastos extensivos” (medida 770). Isto entre muitas outras medidas semelhantes.
O disparate porém é contagioso, pelo que quase todos os outros partidos também trataram de marcar o ponto neste debate, sendo que o PSD, sem ter elaborado uma proposta com o detalhe e a sofisticação retórica da do PAN, tratou de não se ficar nas encolhas do que diz respeito à moldura penal dos crimes contra os animais de companhia: nos casos considerados mais graves, em que exista morte do animal, a pena pode ir até três anos de prisão, o mesmo que propõe o PAN e também o Bloco.
Podem achar-me antiquado, mas para mim o humanismo ainda vem à frente do animalismo.
Não sou jurista, não conheço o detalhe do nosso Código Penal, mas uma simples busca permitiu-me verificar que três anos é a mesma moldura penal que nele se prevê para certos crimes contra a autodeterminação sexual, crimes de sequestro, crimes de burla, crimes de roubo simples, crimes de falsificação de documentos e por aí adiante. O que me suscita uma questão singela: mas estes senhores deputados, incluindo os do PSD, perderam a noção das proporções? Acham mesmo que com remendos assim o Código Penal fica mais coerente e equilibrado?
Sinceramente não creio que tenham perdido muito tempo a pensar nisso. Pensaram mais, repito, nos 54% de lares que têm um animal de companhia (eram 45% em 2011, a evolução é rápida). Pensaram mais no eleitorado que se acumula no litoral e decide eleições e incomodaram-se pouco com o eleitorado do interior, aquele que serve para embelezar discursos e pouco mais.
Não desvalorizo a importância dos animais de companhia – sobretudo não desvalorizo a companhia que fazem num país envelhecido e no qual em quase um quarto dos lares só habita uma pessoa. Não tenho qualquer reserva, bem pelo contrário, relativamente aos princípios que sustentam a defesa do bem-estar animal – de resto, pratico-os.
Agora é necessário ter noção das proporções e das prioridades. Incomoda-me a inversão de valores que permite encontrar mais indignação nas redes sociais quando surge um animal abandonado do que perante o relato da vida de um sem-abrigo.
Podem achar-me antiquado, mas para mim o humanismo ainda vem à frente do animalismo.
Declaração de interesses – Tenho seis cães e dois gatos pois vivo no campo. São todos adoptados, menos um, que me foi oferecido. A mais recente apareceu-nos há poucas semanas vinda do nada, ainda cachorra, provavelmente porque tinha sido abandonada – depois de múltiplos esforços para encontrar o possível dono (não tinha chip), ficámos com ela. Quem quiser conhecê-los estão numa conta própria de Instagram: @velharosa. Estou a par das condições dos canis públicos da zona em que vivo e sei onde é perigoso passear com os cães por causa das matilhas assilvestradas.
PS. As reacções a este texto no Facebook foram o tema do meu comentário na Rádio Observador, É impossível discutir com os talibãs da defesa dos animais.
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