Imagine o leitor um país. Nesse país, os juízes do Tribunal Constitucional são nomeados pelos partidos, podendo sair directamente desse Tribunal para o Governo. O ministro da Justiça toma posse, enquanto ministro, como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, e na qualidade de ministro toma decisões sobre, por exemplo, os salários dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça.

Nesse país, um adjunto do ministro da Justiça pode sair do gabinete do Governo para ir directamente para o seu lugar de procurador e investigar, por exemplo, membros do Governo a que pertenceu por suspeitas de prática de crimes económicos. Outro adjunto pode também ser procurador e juiz e até ter sido condenado por pressionar outros procuradores para forçar o arquivamento de um processo judicial que investigava um  primeiro-ministro, que veio a ser acusado de “mercadejar” a sua função, por causa de um projecto imobiliário. Um outro procurador, que trabalhou com este adjunto numa instituição internacional, foi nomeado, depois de uns “lapsos” no currículo, para uma outra entidade internacional pelo ministro da Justiça, que confirmou uma decisão de um Conselho Superior, onde já se tinha sentado o seu Secretário de Estado, depois de aquela entidade internacional ter decidido que havia outro candidato ao lugar que reunia melhores condições para ocupar o cargo. Este procurador nomeado era irmão de um antigo presidente de um instituto público que aprovou o tal projecto imobiliário que acabou investigado por suspeitas de corrupção do tal Primeiro-ministro acusado de “mercadejar” a sua função. E era ainda irmão de um outro procurador que era considerado influenciável pelo actual Primeiro-ministro para evitar a prisão de um membro do partido a que pertence este Primeiro-ministro.

A procuradora escolhida pela entidade internacional e preterida no seu país estava, por sua vez, a investigar um processo judicial em que eram arguidos um antigo secretário de Estado, um antigo presidente da Protecção Civil e um antigo adjunto de um secretário de Estado, que antes de ser membro de um gabinete governamental era padeiro e dirigente do partido na sua terra. Nesse país, este secretário de Estado que chefiava o ex-padeiro torna-se Ministro, tutelando um organismo que viu, sob a sua alçada, ser assassinado um cidadão estrangeiro. Para resolver este problema, foi demitido o director desse organismo, nomeado pelo partido incumbente, e para o seu lugar foi nomeado novo director, antigo membro do gabinete de quem o nomeou e também dirigente do partido incumbente.

Este  secretário de Estado, feito  ministro, era, por sua vez, casado com uma outra ministra, que depois foi nomeada pelos colegas do Governo a que pertenceu para dirigir uma nova entidade, criada para regular, de forma independente, um sector de actividade.

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Nesse país, o tal procurador que passou a adjunto do ministro da Justiça pode ser casado com uma antiga assessora de um membro de um antigo Governo do mesmo partido, depois feita presidente de uma fundação pública e condecorada por um Presidente da República da mesma cor partidária. Essa mulher do adjunto do ministro da Justiça pode, enquanto presidente da fundação pública a que passou a presidir por indicação partidária, adjudicar serviços ao cônjuge do ministro da Justiça para o qual o seu marido, por sua vez, trabalha. O cônjuge do ministro pode também ser nomeado para exercer funções públicas pelo cônjuge do outro ministro, que também foi ministro e agora foi nomeado pelos seus antigos colegas de Governo para liderar uma entidade reguladora independente.

Nesse país, um Ministro das Finanças pode abandonar o Governo e passar directamente para o lugar de governador do banco central, fiscalizando a actividade exercida pelo anterior Ministro das Finanças, que por acaso é ele próprio, de forma independente. Nesse país, o Procurador-Geral da República e o Presidente do Tribunal de Contas são afastados apesar de todos reconhecerem o seu trabalho – porque, sendo o trabalho muito bom, talvez não fosse oportuno que ele continuasse a ser feito.

Nesse país, há imigrantes maltratados e alojados à força num complexo turístico aprovado em área protegida a uma entidade privada composta por membros de empresas posteriormente arguidas em processos de corrupção ou a familiares de pessoas posteriormente acusadas do mesmo crime, sob beneplácito de um Secretário de Estado de um Governo chefiado pelo tal “mercadejador” de função. Este Secretário de Estado, nesse país, pode depois tornar-se presidente de uma câmara municipal responsável por fornecer dados pessoais de cidadãos estrangeiros por se terem manifestado contra o regime do seu país de origem, sem que veja nisso qualquer sinal de responsabilidade política. Além disso, pode também ser comentador político de si próprio numa estação de televisão que já viu programas perseguidos politicamente.

Nesse país, é possível nomear para a liderança de uma direcção-geral alguém cuja carreira foi feita em gabinetes governamentais e em lugares de nomeação partidária. Nesse país, o topo da Segurança Social pode ser sempre composto por pessoas do partido incumbente – que, por acaso, nos últimos 25 anos tem sido sempre o mesmo, salvo casos de falência do país – como antigos chefes do gabinete de ministros, antigos Secretários de Estado, antigos assessores de membros do Governo e filhos de antigos chefes do gabinete de outros membros do Governo. Nesse país, as direcções regionais, institutos públicos, administrações hospitalares e demais administração pública são também chefiados por comissários nomeados pelos partidos incumbentes, uma vez que o concurso público é uma bizarria e excentricidade de outras terras.

Nesse país, um antigo presidente do partido incumbente pode ter a família toda colocada em lugares públicos, o presidente da Assembleia da República pode ter ficado conhecido por afirmar estar a cagar-se para o segredo de justiça, um antigo ministro pode ter afirmado sem pudor que quem se mete com o seu partido leva e um outro antigo ministro pode ter afirmado que os fundos comunitários são do partido de que faz parte.

Esse país está prestes a celebrar 50 anos de democracia e, para a aprofundar, decidiu não tomar qualquer decisão que a melhorasse, mas antes nomear um comissário político, conhecido por defender publicamente, e de forma menos pública, o tal antigo Primeiro-ministro hoje acusado de “mercadejar” a sua função, por comentar todo o tipo de assuntos em várias televisões, jornais e rádios, e agora também por se comentar a si próprio na estação de televisão do Estado.

Felizmente, esse país não é Portugal. Se fosse, ainda nos acusavam de viver numa espécie de democracia, num tipo de democracia meramente eleitoral ou algo semelhante, e nós não saberíamos como conviver com tamanha afronta, sobretudo numa fase em que estamos todos preocupados em celebrar a robustez do nosso sistema democrático e em combater aqueles que o querem destruir.