Há algumas semanas, o ex-Primeiro-ministro de Portugal, o Sr. António Costa, afirmava que a “visão da Europa estava sob ataque da direita”. Recentemente, voltou a abordar o mesmo tema: “A Europa está sob o fogo populista”. Assim, segundo as declarações do nosso ex-PM, haveria apenas uma visão correcta do futuro da Europa: a das elites políticas europeias  de centro-esquerda e centro-direita. Todas as outras visões seriam automaticamente rotuladas como perigosas.  Na realidade, existem várias visões da Europa política. E todas elas são tão válidas quanto a do Sr. Costa. Se eu fosse uma pessoa pessimista, diria que a Europa defendida pelo Sr. Costa está em vias de colapsar.

Num ano eleitoral para o Parlamento Europeu, torna-se imprescindível que os cidadãos europeus exijam dos seus representantes políticos uma apresentação clara da visão para o futuro do continente. A direcção que a Europa está a tomar permanece incerta. Para onde caminha a Europa política? Para mais federalismo? Para uma Europa a “duas ou três velocidades”? Vários intelectuais, no passado, empenharam-se em responder a esta difícil,  mas crucial questão: qual é o destino da Europa? A partir das reflexões pessoais destes intelectuais emergiram diversas visões sobre o futuro do continente.

Em Março de 2022, poucos dias após a invasão da Ucrânia, escrevi um texto para um jornal francês intitulado “Depois da Guerra Na Ucrânia, que visão para a Europa do Futuro?” (Après la guerre en Ukraine, quelle vision pour l’Europe du futur?). Nele apresentava as três principais visões que a Europa política podia vir a adoptar no futuro:  a Europa federal dos progressistas (a do Sr. Costa); a “Europa das Nações” dos soberanistas; a Europa dos euro-identitários. Claro que existem mais visões, mas estas são as três mais discutidas actualmente (pelo menos fora de Portugal). O texto que vos apresento inspira-se em parte do meu anterior texto, pelo menos na ideia central: com a guerra na Ucrânia, a Europa voltou a entrar na História. E a História, infelizmente, costuma ser sangrenta. Os tempos de paz e o “Fim da História” de Fukuyama acabaram, e se não decidirmos rapidamente que caminho a Europa deve adoptar, receio que os nossos filhos e netos poderão ter de viver num continente desolado…

A Europa federal dos progressistas  

Primeiramente, a Europa Federal. A visão dos que se auto-denominam progressistas (“nous sommes le camp du progrès“, gosta de repetir o presidente francês Emmanuel Macron), aquela que tem sido implementada pelos tecnocratas europeus desde 1992. Esta perspectiva é compartilhada pela maioria das elites políticas, desde os sectores mais à esquerda do espectro político até aos liberais de centro-direita (e mesmo por uma parte da direita conservadora). No passado, eram frequentemente referidos em França como “maastrichianos” (maastrichiens). Trata-se da visão que, segundo o Primeiro-ministro espanhol António Sánchez, irá “fazer a Europa avançar na direcção certa“. A Europa  dos progressista representa, fundamentalmente, uma integração contínua dos Estados europeus na União Europeia. É a Europa sonhada por Olaf Schöltz, Pedro Sánchez, Donald Tusk ou por Emmanuel Macron (que aspira a ser presidente da Europa). Para onde se dirige esta Europa? Em teoria, rumo a uma espécie de “Federação Europeia”, com um governo centralizado, uma moeda única (como já é o caso), uma diplomacia única, uma legislação federal e forças armadas europeias.

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A ideia de uma “União Europeia” não nasceu em 1992 com o Tratado de Maastricht, nem em 1957 enquanto Comunidade dos Estados Europeus, nem mesmo com a CECA (Comunidade dos Estados do Carvão e do Aço). Todavia, esta ideia nunca havia passado de um sonho até ser materializada graças ao esforço de quatro homens: Alcide De Gasperi, Robert Schuman, Jean Monnet e Konrad Adenauer. Já aquando da sua criação, o objectivo não declarado era criar uma Europa Federal. Assim, além do mercado livre europeu e da CEE (Comunidade Económica Europeia), os quatro pais fundadores apresentaram a ideia de uma Comunidade Europeia da Defesa (CED, forças armadas comuns da Europa). A rejeição do Parlamento francês em ratificar a criação da CED deitaram por terra os planos de Schuman e dos seus companheiros. A partir daí,  deixou-se de mencionar a ideia de uma Europa federal, pelo menos até aos anos 90…

O projecto europeu devia, em teoria, levar a uma Europa unida, onde a guerra tornar-se-ia impensável. Quem poderia desejar contrariar uma ideia tão utópica quanto a de uma “paz perpétua”? No entanto, a realidade é outra e o projecto europeu está a descarrilar.  Porquê? Porque um projecto sem um rumo definido dificilmente alcançará o êxito. Na verdade, se eu fosse ligeiramente provocador, diria que o projecto europeu actual tem muito pouco de uma verdadeira federação. Nos Estados Unidos, por exemplo, os Estados (Dakota, Iowa, Texas, etc.) mantêm uma grande autonomia em áreas como a educação, agricultura, direito local, e em algumas políticas sociais e económicas. Por outro lado, o governo federal é responsável pela política externa, pela guerra e pela paz, pelas grandes políticas industriais, pelo controlo das fronteiras e por grandes projectos, tais como a Conquista Espacial (NASA), e pouco mais.

No caso da Europa, observamos o exacto contrário: a União Europeia não fala a uma única voz em questões de política externa – a situação na Ucrânia é um exemplo evidente. Além disto, não existem “Forças Armadas Europeias”, e os projectos militares comuns, como o SCAF (Système de Combat Aérien du Futur, avião de caça de 6º geração) e o MGCS (Main Ground Combat System, futuro tanque de combate), ambos projectos franco-alemães, correm o risco de serem anulados devido a divergências entre os Estados. No campo dos grandes projectos científicos, a Agência Espacial Europeia (ESA) enfrenta crescentes dificuldades de desenvolvimento, reflectindo visões divergentes entre os Estados-membros, especialmente entre a abordagem da visão “New Space” alemã e a visão mais estatal da França. Quanto ao controlo das fronteiras da Europa, vemos uma luta constante entre os países fronteiriços da UE e Bruxelas. A União Europeia está cada vez mais envolvida na regulação da agricultura dos países membros, chegando ao ponto de determinar o tamanho legal de produtos como tomates ou maçãs. Há também interferência no sistema judicial dos Estados membros, como a imposição do “direito dos juízos europeus”, obrigando os países a aceitarem de volta criminosos violentos estrangeiros recentemente expulsos. Nos EUA, o governo federal americano foi capaz de estabelecer um “patriotismo constitucional” desde os Founding Fathers. Pelo contrário, as elites europeias continuam a desprezar a Civilização Europeia, ao ponto de recusar inscrever as raízes cristãs da Europa na Constituição Europeia. Como manter uma federação unida se as elites pisam as diferentes culturas nativas?

Certamente, existem muitos prós e contras do projecto europeu na sua forma actual.  No entanto, é difícil definir o projecto europeu, pois não está claramente delineado. Parece que até mesmo os tecnocratas de Bruxelas hesitam em assumir uma visão federalista clara,  sugerindo uma certa ambiguidade. Considerando os altos níveis de abstenção nas eleições europeias, é possível sugerir uma falta de entusiasmo de uma parte significativa, se não da maioria, dos europeus em relação à visão da Europa proposta pelos progressistas.

A Europa das Nações – soberanismo parcial e integral

O termo “soberanismo” não é novo, mas ressurgiu nas discussões por toda a Europa durante os anos 1990. A preparação para a ratificação do Tratado de Maastricht em 1992 desencadeou intensos debates políticos – especialmente na França, Alemanha, Países Baixos, Itália e Reino Unido – entre duas facções distintas: os “romanos”, defensores da “Europa das Nações” estabelecida pelo Tratado de Roma de 1957, onde se situam os soberanistas, e os “maastrichianos”, partidários de uma Europa onde a integração levaria ao federalismo.

Os defensores do soberanismo dividem-se em dois grupos: aqueles que procuram reformar a União Europeia e diminuir substancialmente os poderes desta última; e os adeptos do soberanismo integral, que apoiam a saída da União Europeia (Brexit, Frexit, Deutschxit) e a total recuperação da soberania pelos Estados europeus. Para os adeptos do soberanismo, a União Europeia usurpa a sua função inicial, ao atribuir-se poderes que não lhe competem, com o objectivo de criar uma Europa subjugada aos grandes interesses económicos e aos lobbies, desapossada de sua identidade civilizacional, sem fronteiras e inundada por populações de origem extra-europeia.

Os seguidores desta visão desejam que cada Estado-Nação membro da União Europeia recupere a sua soberania, seja económica (através da saída do euro), seja no campo da agricultura, seja no controle das suas fronteiras, e a consequente abolição do Espaço Schengen. Consideram a UE como um polvo que estende os seus tentáculos até cada capital para dominar a política interna e externa. Naturalmente, são a favor da protecção das identidades de cada povo europeu, opondo-se ao que consideram ser uma vontade real dos burocratas de Bruxelas em diluir os povos europeus nativos na globalização ultra-capitalista. Segundo os soberanistas de direita (e alguns de esquerda), a disposição dos burocratas europeus em aceitar milhões de imigrantes extra-europeus todos os anos faz parte de uma lógica: primeiro, aceitar mão-de-obra barata em benefício das grandes multinacionais, cujos interesses são representados pelos quase 20.000 lobistas presentes em Bruxelas; em segundo lugar, reduzir os salários dos nativos europeus; em terceiro lugar, destruir a homogeneidade dos povos europeus, “libanizar” os países europeus e criar um estado permanente de “anarco-tirania” (termo em voga numa parte da direita radical ultimamente).

Existem várias críticas ao modelo soberanista. Uma delas pode ser resumida pelas palavras do ex-presidente francês François Mitterrand: “o nacionalismo é a guerra” (le nationalisme, c’est la guerre). Assim, aqueles que desejam uma Europa federal, como o Sr. Macron ou a Sra. Merkel, afirmam que a morte da UE e o retorno de nações fortes poderiam ressuscitar os “nacionalismos chauvinistas” e, consequentemente, as guerras. Todos temos em mente as duas terríveis guerras mundiais. É normal que exista uma certa apreensão quanto ao retorno das nações soberanas e aos sentimentos nacionalistas.

Outra crítica do modelo soberanista, feita tanto pelos progressistas como pelos identitários europeístas, reside no facto de que as nações europeias, pequenas ou médias na sua maioria, pouco ou nada pesam face aos gigantes (EUA, China, Brasil, Índia, Rússia). Aliás, os críticos do soberanismo afirmam que grandes projectos tais como os foguetões Ariane da Agência Espacial Europeia não teriam sido possíveis de suportar sem o apoio de vários países europeus. Ou que face a um ataque da Rússia, as pequenas nações da Europa dificilmente poderiam defender-se individualmente. As eleições europeias de 2024 poderão levar a um drástico aumento no número de deputados membros de partidos conservadores e de direita radical, muitos deles adeptos do soberanismo (parcial ou integral). Resta saber se os partidos soberanistas vão conseguir trabalhar juntos ou não. É a grande incógnita das próximas eleições europeias de 2024.

A Europa dos euro-identitários  

Por fim, temos os defensores de uma Europa euro-identitária. Esta perspectiva é consideravelmente menos conhecida do que as outras duas. Em Portugal, é praticamente desconhecida, à excepção de um reduzido grupo de identitários. Contudo, dada a sua singularidade, é pertinente abordá-la. Embora esta visão não se encontre representada em nenhum partido político, tem vindo a ganhar popularidade entre uma parte dos jovens europeus, sobretudo através da internet.

Surgiu nos anos 60, primeiramente em França no seio do movimento Europe-action, depois em vários movimentos europeus ligados à Nova Direita Europeia. Como o próprio nome sugere, os identitários colocam uma ênfase suprema na importância da identidade dos povos e na necessidade de a proteger contra os perigos da globalização. Segundo eles, a dita globalização, através dos seus fluxos comerciais, acarreta consigo migrações extra-europeias massivas que ameaçam a própria existência da Civilização Europeia. Logicamente, opõem-se à União Europeia e aos seus burocratas, uma vez que, à semelhança dos defensores da Europa das Nações, os identitários não desejam ver as nações europeias dissolvidas no denominado “magma globalista”.

Os identitários acreditam que o globalismo pressupõe um mundo aberto, sem fronteiras, sem Nações, sem identidades, sem história, sem povos definidos, onde apenas imperam os fluxos comerciais e a consequente movimentação de migrantes. Um mundo onde o dinheiro reina soberano, onde apenas uma língua é falada, um inglês reduzido a 600 ou 700 palavras (uma espécie de novilíngua). É um universo onde uma diminuta elite de ultra-ricos detém o controlo absoluto, e onde o próprio ser humano se torna um mero produto de consumo, assimilado aos demais. Tal como os soberanistas, os identitários desejam o fim da imigração proveniente de países extra-europeus. Para estes, tal migração é utilizada com o intuito de minar a homogeneidade das nações europeias, visando enfraquecer e destruir as “defesas naturais” dos países europeus.

Facto interessante, os euro-identitários também abraçam o federalismo – já nos anos 60 os membros de Europe-action eram pan-europeístas – embora sob uma óptica distinta daquela que os progressistas defendem. Para eles, uma Europa Federal deve, antes de tudo, ser identitária. Portanto, ela deve existir precisamente para salvaguardar as identidades nacionais (francesa, inglesa, alemã, norueguesa, portuguesa, etc.), bem como as identidades regionais (basca, bretona, escocesa, flamenga, etc.). Manifestam, ainda, uma profunda preocupação pela preservação da chamada “Identidade Multi-milenar Europeia”, ou seja, uma Civilização enraizada na herança greco-romana, germânica, pagã, cristã, que floresceu nas culturas e tradições imemoriais dos “velhos-europeus” (conforme as palavras de Marija Gimbutas) e dos “indo-europeus” – como sabiamente exposto pelo eminente intelectual Georges Dumézil.

Segundo os identitários adeptos desta visão euro-identitária, perante os gigantes como os EUA, a Rússia, o Brasil, a Índia ou a China, as nações europeias são insignificantes. Uma federação europeia teria,  argumentam, o poder económico, científico e militar para fazer frente aos gigantes e, até mesmo, poderia ascender ao estatuto de maior potência mundial, resgatando assim a grandeza perdida da Europa. Opõem-se logicamente  aos defensores da “Europa das Nações”, pois entendem que tal configuração resultaria numa Europa fragmentada em nações médias e pequenas, incapazes de competir com os gigantes – o  que os geógrafos denominam de “países-continente” – mencionados anteriormente. São, de facto, seguidores de Carl Schmitt, na medida em que compartilham a crença de que o futuro pertence aos grandes espaços geográficos (Grossraum). Ademais, opõem-se aos progressistas, pois acreditam que estes, na verdade, desejam uma Europa federal como um meio para um futuro Estado Mundial,  enquanto os identitários aspiram que a Europa permaneça eternamente fiel à sua essência: pagã, cristã, europeia!

Sem partidos que possam defender esta ideia, não vai pesar nos debates para as europeias, contrariamente às duas outras visões.

A História de regresso à Europa

Aqui estão, resumidamente, três diferentes visões do futuro da Europa! Três de entre muitas outras. Enquanto todos os líderes europeus socialistas, sociais-democratas e liberais/ultraliberais parecem apoiar uma Europa Federal desprovida de identidade, mas economicamente ultraliberal, isto não reflecte necessariamente a vontade dos povos europeus. O crescente aumento dos votos recebidos pelos partidos eurocépticos, adeptos da visão de uma Europa das Nações, demonstra que milhões de europeus se tornaram desiludidos com esta União Europeia.

Por outro lado, mesmo entre o eleitorado de alguns partidos considerados soberanistas e “nacional-populistas”, nem todos são necessariamente favoráveis à saída da UE e do euro. Alguns analistas até sugeriram que os resultados de Marine Le Pen nas eleições de 2017 foram influenciados pela sua ambiguidade em relação a este assunto. Muitos europeus preferem, pelos vistos, uma reforma da EU. Certamente, haveria muito mais a dizer sobre o assunto, mas seria necessário escrever dois ou mais artigos para abordar todas as perspectivas. Poderíamos mencionar a visão chamada “euro-siberiana”, de uma Europa Confederal que se estenderia de Lisboa a Vladivostok, uma ideia compartilhada pelo autor de direita identitária Guillaume Faye num certo momento da sua vida. Ou ainda a ideia de alguns americanos e europeus que vislumbram, a médio ou longo prazo, a criação de uma Federação Ocidental entre os EUA e a Europa, considerando-as como parte de uma mesma Civilização Ocidental, estendendo-se de Seattle a Kiev, com o objectivo de enfrentar a Rússia e a China. Existem também defensores de uma Federação Latina, entre a França, Espanha, Itália e Portugal.

Não pretendo defender nenhuma visão em particular. No entanto, as pesquisas de opinião e a significativa taxa de abstenção nas eleições europeias indicam que uma parte importante, se não a maioria, dos europeus discordam da visão das “elites” europeias, à qual o Sr. Costa pretende pertencer. Resta saber se o Sr. Costa, o Sr. Macron e a Sra. Von der Leyen já se deram conta deste facto. E, caso tenham, será que irão agir conforme a citação de Bertolt Brecht: “Visto que o povo vota contra o governo, é preciso dissolver o povo“? Esperemos que as elites políticas europeias não apliquem esta frase aos povos europeus.