São oitenta e cinco páginas. Oitenta-e-cinco. O documento é disponibilizado pelo Home Office (o departamento que trata dos pedidos de residência e nacionalidade) e nele é necessário provar — através de moradas, contas de água e de luz, contratos de habitação, et cetera — que se vive (ou viveu) no Reino Unido há, pelo menos, cinco anos.

Mas esta é somente uma parte (talvez a mais simples) da burocracia, da muita burocracia, que até ao referendo de 23 de junho não era exigida.

Até então, até à vitória do “Sair” no referendo ao Brexit, o cartão de residência não era um documento necessário — nem para ter um contrato de trabalho, nem para aceder à saúde, nem para alugar uma casa. Para um cidadão natural da União Europeia, viver no Reino Unido era quase como viver no país de origem. Agora, o cartão de residência é a derradeira esperança para os mais de três milhões de europeus a residir no Reino Unido. Caso não o tenham, correm o risco de ter que abandonar o país.

E o repatriamento até já começou. O caso mais vezes contado e recontado é o de Monique Hawkins, uma engenheira de software holandesa que vive em Surrey, Inglaterra, há cerca de 24 anos e que foi foi “convidada” pelo Ministério da Administração Interna a sair do Reino Unido.

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Agora, o Guardian dá à estampa um outro caso, mas em tudo semelhante: o de Elly Wright. Elly é, tal como Monique, holandesa, mas vive no Reino Unido ainda há mais tempo, desde 1967. Trabalhou no serviço nacional de saúde primeiro, foi depois assistente social e desde que se reformou, em 1993, é pintora. Conheceu o primeiro marido, pai do filho — que nasceu em Inglaterra e é cidadão britânico –, na Alemanha, quando este cumpria lá o serviço militar. Separou-se. Casou segunda vez, agora com um médico psiquiatra, Michael. Nunca pediu a cidadania britânica. E agora teme ter que sair do país.

Elly Wright vive no Reino Unido desde 1967 (Créditos: Martin Godwin/Guardian)

Nunca pensei que, com 75 anos, teria que provar a alguém o meu direito de viver aqui. Deixei de trabalhar há 24 anos. E não tenho a documentação que me exigem. Quando o Michael adoeceu — ele deixou de conseguir andar — tive que fazer remodelações em casa e deitei muita da documentação fora. Mas sempre contribuí, sempre paguei os meus impostos. O voto no ‘Sair’ [da União Europeia] foi um choque para mim”, explica.

Desde então, desde o referendo, Elly Wright vive num desassossego constante. E recorda: “Acordei às 4 da manhã do dia 24 de junho e pensei em ver rapidamente os resultados do referendo para depois voltar a dormir. Posso dizer com honestidade que não voltei a ter uma boa noite de sono desde então. Durmo duas ou três horas e desperto, preocupada. Onde é que vou encontrar as provas de que vivo e trabalho no Reino Unido há 50 anos?”

“Sinto-me mais britânica do que holandesa. Não me sinto uma estrangeira. Sinto e vivo a cultura britânica”, confessa. E se tiver que regressar à Holanda? “O meu marido morreu há cinco anos. Se tiver que o fazer [voltar à Holanda], faço. Mas não quero ter que fazer. Não só por causa do meu filho que aqui vive, mas porque quero estar perto do lugar [em Surrey, no sudeste de Inglaterra] onde o meu marido está sepultado. Os meus amigos estão aqui. Eles estão aqui, não estão na Holanda. É uma situação horrível — e sei que não sou a única pessoa a viver isto.”

Pedir residência no Reino Unido? Um calvário em 85 páginas

Os números mais recentes do Departamento de Administração Interna britânico, publicados depois de Hilary Benn, deputado trabalhista e membro do Comité Parlamentar para Análise do Processo Brexit, ter pedido a informação, mostram um aumento de 50% no número de pedidos de residência desde que o resultado do referendo foi conhecido. Durante o outono de 2016, o departamento processou mais de 38 mil pedidos, comparando com 9.500 no mesmo período do ano passado.

Segundo um estudo conduzido pelo partido Liberal Democrata, e publicado no diário Guardian, a taxa de rejeição de vistos a cidadãos europeus está nos 28%, o que significa que, se esta taxa se mantiver, um terço, o mesmo que dizer um milhão de cidadãos europeus, pode não conseguir garantir os seus direitos de permanência antes de o Brexit se concretizar.