Os escritores e poetas como ícones de moda é um tema que certamente arrepiará os cabelos de muitos intelectuais, particularmente aqueles que professam uma moral puritana judaico-cristã de que os objetos, em especial as roupas, são símbolos de almas fúteis e vazias. Talvez seja porque esse preconceito se cristalizou nas últimas décadas no meio literário português que dificilmente poderíamos fazer o que fez a jornalista de moda britânica Terry Newman, que acaba de lançar o livro Legendary Authors and the Clothes They Wore, onde analisa os guarda-roupas de 50 escritores que acabaram por se tornar ícones de moda.

“Legendary Authors and the Clothes They Wore”, de Terry Newman, foi lançado nos EUA e tem data de saída no Reino Unido marcada para dia 27.

Das roupas masculinas da romancista Georges Sand, ao dandysmo de Oscar Wilde e Proust, dos fatos brancos de Mark Twain às jardineiras de Allen Ginsberg, dos flipper-dress de Zelda Fitzgerald aos vestidos de Joan Didion, muitos são os escritores que parecem ter lido Baudelaire no Pintor da Vida Moderna, obra em que ele mostra como o culto do “natural” é apenas regressão e barbárie enquanto o “artifício” é sinónimo de “civilidade e refinamento espiritual”.

Terry Newman vai mais longe e tem o “atrevimento” de relacionar a forma de vestir de escritores e poetas com a sua obra e a maneira como usam as palavras. O que é certo é estes autores que hoje temos vontade de imitar pelo charme, a singularidade, a audácia com que envergaram certas peças de roupa e acessórios, são também autores cujas obras trouxeram algo de novo e de marcante à história da literatura.

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Voltemos a Baudelaire. Poeta, ensaísta, ele próprio um dandy, com aquela nota de subversão aliada à elegância que a palavra designa, afirmava que a moda manifesta o desejo “de retirar o eterno do transitório”, portanto os objetos que envergamos não são apenas vacuidade mas linguagem, criatividade, manifestação de uma aventura poética, e também resultado do nosso constante “apetite do belo”. É nesta busca do belo que se ergue a cidade dos homens, as suas casas, as suas obras, as suas roupas.

Cabelos longos, lenços de seda, bastão e longos casacos de pele, luvas, assim era Óscar Wilde, o mais perfeito dandy do fin-de-siecle.

Agustina Bessa-Luís, uma das raras escritoras portuguesas que nunca teve medo de assumir publicamente o quanto gostava de “toilettes”, dizia que seria bom ganhar o prémio Nobel, “mas de certeza não tão bom quanto comprar um vestido novo”. Quem despreza estes prazeres da alma que atire a primeira pedra. Tal como Agustina, muitos destes autores não foram propriamente obedientes às ditaduras da moda mas faziam a sua própria interpretação da mesma, e juntavam-lhe a sua criatividade e auto-conhecimento para construirem um estilo que, como se sabe, não é a combinação de roupas mas sim a combinação do espírito com a matéria.

Samuel Beckett, por exemplo, além de ter revolucionado a linguagem do romance, usava como ninguém camisolas grossas de gola alta, só calçava botas Clarks Wallabee e carregava uma mala da Gucci. Além daquele cabelo curto e espetado que usou desde os 17 anos até à morte. Marcel Proust não só vigiava as doenças do seu corpo mas também vigiava tudo o que entrava e saía de moda, quer da masculina, quer da feminina. Além do icónico bigode, dos lenços de seda e do bastão, havia os casacos compridos que se tornaram uma das suas imagens de marca. Na sua obra Em Busca do Tempo Perdido, seja em Odette de Crécy seja em Albertine, as roupas, as joias, as cores e os tecidos não são apenas manifestação do mundo interior das personagens e do narrador mas também levam a desenvolvimentos da trama dos acontecimentos. Tal como Proust, Oscar Wilde dava extrema atenção às roupas e não hesitava em endividar-se para as ter e, fosse nos salões, fosse na prisão, consta que estava sempre irrepreensível.

O dramaturgo Samuel Beckett com as suas eternas camisolas de gola alta e a mala Gucci que ele usou com uma elegância (aparentemente) desatenta.

As escritoras na vanguarda da moda e do romance

Apesar das restrições, apesar de não terem um quarto que fosse seu, algumas escritoras e poetas foram guarda avançada da modernidade literária e ornamental. Na primeira metade do século XIX a escritora francesa George Sand, ainda jovem, escandalizava Paris ao trocar os vestidos longos e pesados por fatos masculinos e botas. Sand não despertou apenas ferozes paixões em Chopin ou Alfred de Musset, ela antecipou o século XX e uma liberdade que nunca devemos tomar como garantida. Também Colette fez dos fatos masculinos e dos olhos muito pintados de negro o seu statement num mundo difícil para as mulheres desobedientes. Gertrude Stein recusava-se a usar corpete e combinava o cabelo curto e camisas masculinas com as longas saias exigidas pelo seu tempo.

George Sand ou Aurore Lucile Duphin caricaturada com as suas roupas masculinas e a fumar.

Virginia Woolf não foi só a mais genial cultora do fluxo de consciência no romance, foi também uma hábil agregadora de detalhes que imortalizaram o seu estilo, desde a forma como apanhava o cabelo, até à forma como conseguia apresentar-se simultaneamente requintada e simples. Os acessórios eram uma parte importante da sua difícil relação com o mundo, peças que ela vai transportar para alguns dos seus livros como Mrs Dalloway, que gostava especialmente de luvas, batons e pó de arroz. Já Simone de Beauvoir sabia como ninguém usar lenços e turbantes na cabeça e raramente a vimos de cabelo solto, tal como hoje a escritora norte-americana Zadie Smith nunca aparece sem um longo lenço enrolado na cabeça reproduzindo o modo como o usavam as escravas negras na América. Marguerite Duras não passava sem os seus vários anéis grossos e as suas muitas pulseiras. Já com mais de 80 anos continuava a usar batom vermelho e a vestir roupas de Yves Saint Laurent, para quem ela escreveu o prefácio de um livro.

Marguerite Duras cultivou desde jovem um gosto pela moda e acabou por ter um estilo que fez escola: casacos de malha largos, muitos anéis e pulseiras.

Anaïs Nin deslumbrava com os seus vestidos exóticos e gostava de mostrar as sua ancestralidade andaluza vestindo-se de sevilhana. Na mesma época, Zelda Fitzgerald conquistava Nova Iorque com os seus vestidos soltos, com franjas, e os seus cabelos curtos e a sua capacidade para ingerir muitos copos de champanhe.

Mais tarde a poeta norte-americana Anne Sexton adornava a sua extraordinária beleza com sábia elegância a vestir-se, fosse num maxidress de verão, fosse na combinação jeans/t-shirt. Tal como ela, Joan Didion poderia ganhar o prémio da escritora mais fashionable de sempre, aliando o ultra clássico ao minimalismo pós-moderno. Em 2015, aos 81 anos, Joan chocou muitos dos seus leitores quando aceitou ser a cara de uma campanha da marca Céline. Linda, com um vestido negro e um longo colar, Joan mostrou — como Duras já o tinha feito — que a beleza e o charme não são prerrogativas dos jovens.

Joan Didion na campanha da Céline, lançada em 2015. © Divulgação

Onde estão os ícones de estilo das letras portuguesas?

Portugal é um país onde não abundam escritores cujo estilo tenha marcado ou feito escola. Não obstante os jovens poetas cultivarem os beatniks, a verdade é que o máximo que conseguem é imitar as barbas de Allen Ginsberg sem nunca chegar à mais refinada pulp fashion de William S. Burroughs, com os seus fatos completos, fedoras e óculos de aros negros. Já os romancistas, por mais que cultivem o pós-modernismo de David Foster Wallace, é pouco provável que usem um lenço de arabescos na testa com medo de caírem no ridículo.

De qualquer forma são as mulheres que conseguiram ser mais carismáticas na forma de vestir, sendo também as roupas uma expressão da sua vida corajosa: dos vestidos de voile de Agustina aos chapéus e lenços de Sophia, passando pelo classicismo de Isabel da Nóbrega, provavelmente a mais bela das escritoras portuguesas. Antes de todas está Florbela Espanca, com os seus colares de pérolas, chapéus e vestidos cheios de detalhes que a faziam parecer uma parisiense caída do céu na Lusitânia.

Não sendo portuguesa mas escrevendo em língua portuguesa não podemos deixar de mencionar Clarice Lispector, que adorava moda, escreveu sobre moda e sabia vestir-se com a mesma sabedoria com que escreveu: provocando espanto, evocando o fogo sagrado. Com as suas sobrancelhas muito bem delineadas, o eyeliner negro a contorna-lhe os olhos, ela sabia sempre vestir a moda efémera do seu tempo com uma classe intemporal. Já que dificilmente conseguiremos repetir a sua genialidade, copiemos ao menos o arrojo do seu estilo.

Entre os homens, um dos poucos que nunca escondeu o seu gosto por roupas é Helder Macedo que não abdica dos seus lenços de seda da Liberty enrolados androginamente ao pescoço, nem das t-shirts artísticas do criador inglês Paul Smith. Isto para não falar das eternas calças curtas de Luiz Pacheco que hoje são um dos hits dos dandies do século XXI. E quando as marcas mais caras do mundo desatam a fazer malas que parecem sacos de comprar, que dizer dos sacos de plástico que o editor carregava como a sua imagem de marca? Pacheco afinal pode ser o nosso mais visionário ícone de estilo das letras portuguesas.