Teresa Villaverde olhou para a família de Tonino de Bernardi e viu um todo que funciona. “Uma família onde as várias gerações se respeitam e entendem, onde todos escutam o outro e aprendem. Parece a coisa mais comum do mundo, e fácil de encontrar, mas não é”, observa a realizadora. Daí lhe veio a vontade de fazer um documentário, que resultou em “O Termómetro de Galileu”, com estreia absoluta este domingo no festival de cinema de Roterdão, incluído na secção não-competitiva Signatures.

O trabalho representa a segunda incursão da autora por território documental, depois de “A Favor da Claridade”, média-metragem de 2003 feita a convite do artista plástico Pedro Cabrita Reis, quando este representou Portugal na Bienal de Veneza. Surge imediatamente a seguir a “Colo”, ficção que Teresa Villaverde levou há um ano ao festival de Berlim, com estreia em Portugal agendada para o próximo mês de março.

A realizadora, de 51 anos, identifica a ficção como “meio natural” de expressão artística, mas também diz gostar da “dificuldade de fazer um filme que não é ficção”. “Penso que nem ‘A Favor da Claridade’ nem agora ‘O Termómetro de Galileu’ são documentários muito ortodoxos, mas também não sei muito bem o que é isso”, comenta.

“Tonino de Bernardi é um realizador italiano que começou a fazer filmes nos anos 60, filmes underground, fora do sistema, e ainda hoje é uma pessoa que vive fora do sistema, muitas vezes com inúmeras dificuldades, mas sempre regendo-se pelos mesmos princípios, pela mesma curiosidade por tudo o que existe no mundo, por todas as pessoas com quem se vai cruzando”, explica Teresa Villaverde ao Observador. “Aquela família é um grupo imenso, um clã, mas um clã aberto onde, se gostarem de ti, podes entrar. Tenho a sorte de os conhecer desde o início dos anos 90, conheci-os quando fui a Itália apresentar o meu primeiro filme [“A Idade Maior”]. Penso que sou família para eles, e eles são, seguramente, família para mim.”

[trailer de “O Termómetro de Galileu”]

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Por seu turno, a portuguesa Susana Nobre, de 43 anos, mais habituada ao documentário, leva a Roterdão “Tempo Comum”, uma primeira exploração por parte da autora do que se pode classificar como linguagem ficcional. O filme apresenta-se na secção competitiva Bright Future, dedicada a “talentos emergentes”, e é exibido em estreia absoluta nesta sexta-feira (e em mais quatro sessões nos próximos dias). Coincide com a proposta de Teresa Villaverde no sentido em que também retrata a intimidade de uma família. Mas o registo é outro.

“É o meu filme mais encenado e partiu de um argumento escrito”, explica Susana Nobre. “Os textos são escritos, a própria luz é trabalhada, há um lado muito contemplativo. O pano de fundo é sincero, é a vida dos protagonistas do filme, mas eles são dirigidos. Não é um cinema observacional, não está dependente de uma espera, de um acontecimento, é um cinema que intervém e dispõe dos protagonistas. É algo que nunca tinha experimentado, tive sempre algum pudor com a encenação.”

Outros portugueses se apresentam na competição do festival holandês, cuja 47ª edição começou na quarta-feira, 24, e termina a 4 de fevereiro: Filipa Reis e João Miller Guerra, com “Djon África”; e Diogo Baldaia, com a curta “Miragem Meus Putos”.

Fora de competição, e sem incluir coproduções, de Portugal foram escolhidos “Quem é Bárbara Virgínia?”, de Luísa Sequeira; “Sunstone”, de Filipa César e Louis Henderson; “Tudo o que Imagino”, de Leonor Noivo; “A Fábrica de Nada”, de Pedro Pinho, e “Fátima”, de João Canijo. A artista Grada Kilomba, nascida em Portugal e com ascendência santomense e angolana, tem dois filmes em Roterdão: “Illusions” e “While I Write: Act III of the Desire Project”.

[trailer de “Tempo Comum”]

Para Teresa Villaverde, a participação este ano, já como consagrada, parece ser o corolário de uma ligação antiga ao festival. “Tenho tido a sorte de estrear sempre os meus filmes em grandes festivais internacionais. Sou convidada e vou. Tenho por Roterdão um carinho especial, todos os meus filmes passaram por lá, vi o festival crescer”, diz a realizadora de “Os Mutantes”, que já chegou a fazer parte do júri.

“Se me têm lá sempre, e penso que só uma vez é que não fui, é porque se interessam há muitos anos pelo que eu faço. Fico contente que me ponham nos consagrados. Gosto do nome da secção Signatures, é um pouco a forma de eles dizerem que aqueles cineastas têm uma assinatura própria que eles reconhecem, e apreciam.”

Por seu turno, Susana Nobre, não sendo estranha em certames do género, pois em 2015 estreou em Cannes a curta “Provas, Exorcismos”, debuta agora em Roterdão. Vê os festivais como “momentos fundamentais no caminho de uma obra, porque determinam muitas vezes se ela vai ou não ter estreia noutras salas”. Porém, defende que “nunca se deve entrar na lógica de fazer filmes para festivais, não pode ser isso a determinar a motivação ou a inspiração”. “As lógicas dos festivais obedecem muitas vezes a certas culturas de gosto e respondem a critérios que não apenas a ideia de cinema. Por isso, às vezes, é bom não estar dependente de os filmes concorrerem aos festivais principais”, sustenta Susana Nobre.

Uma imagem de “Tempo Comum”, de Susana Nobre

“Tempo Comum”, de 64 minutos, tem como protagonistas o casal Marta Lança e Pedro Castanheira e a filha recém-nascida, Clara. São não-actores a fazerem deles próprios. As filmagens decorreram em fins de 2016 em casa desta família, em Lisboa, facto que a realizadora descreve como “gesto de amizade”. “É um filme em que não há tensão, não há uma crise, é uma espécie de um pequeno olhar panorâmico sobre o mosaico dos dias de um casal após o primeiro filho, numa cidade e num apartamento”, resume a autora.

“Parti da minha própria experiência de mãe e interessava-me a ideia de alguém que está num pequeno exílio, em casa, e de tudo o que se passa nos momentos de intimidade, quando a mãe cuida do bebé, quando se dá a aproximação das visitas e do que isso faz despoletar em termos dos diálogos. Mas nunca tive como intenção orientar o filme para debater o lugar da mulher como mãe ou como mulher. O que resultou foi algo menos minimal do que projeto inicial. O projeto inicial seria ter alguém que fala e alguém que escuta.”

Por coincidência, os protagonistas de “O Termómetro de Galileu” também têm uma relação de amizade com a realizadora que os filmou. Teresa Villaverde regista uma certa intimidade, ora como observadora, ora como participante. “Fiquei em casa deles, dormia lá, comia lá. Andava de um lado para o outro com eles, com a Mariella e o Tonino. A Mariella é a mulher do Tonino, o pilar da família, e também é muito importante no filme. O filme é sobre os dois”, sublinha.

Pela primeira vez, a realizadora ocupou-se de todas as funções: imagem, som, montagem. Até a correção de cor. “Quis trabalhar como às vezes o Tonino trabalha, penso que o filme ganha com o modo como o decidi fazer. O que me importou foi a energia que cada plano trazia ao filme, e não me importei se a câmara estava torta ou direita. O filme é limpo, no sentido de claro, de uma coisa que vem do coração limpa.”