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Tricot, crochet, macramé ou ponto cruz — estas avós não se medem pelos pontos que sabem fazer, mas as habilidades que dominam, algumas desde novas, valem-lhes atualmente uma vida para lá de ativa. Há dois anos e meio lançavam a primeira coleção, depois de umas boas tardes de volta das agulhas. Depois das luvas bordadas com flores e caveiras vieram os workshops, as viagens, as colaborações com artistas e A Avó Veio Trabalhar sempre a crescer — em avós, claro, mas também em agenda. Hoje, o projeto tem tanto de família como de negócio social.

Para Susana António, designer de formação, os conceitos design e envelhecimento começaram, desde cedo, a fazer sentido juntos. Ainda estava a estudar na Faculdade de Belas-Artes, já lá vão 13 anos, quando o caminho lhe começou a parecer viável. Mas ainda havia muito que palmilhar até chegar a altura de pôr a ideia em prática. Envolveu-se em programas e concursos, sempre com comunidades lisboetas, design e cultura pelo meio. Em 2011 cruzou-se com Ângelo Campota, a outra metade do cérebro da Fermenta, a organização que engloba o projeto das avós. A empatia foi imediata e as noções do que um negócio social devia ser perfeitamente coincidentes. Uma espécie de fome e vontade de comer que se juntaram e resultaram numa barrigada de boas ideias. Uma delas, a melhor de todas, nasceu três anos depois, na Praça de São Paulo, em Lisboa. Susana e Ângelo apresentaram o projeto e conseguiram um financiamento de 34 mil euros do programa BIP/ZIP (Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa). O primeiro ano estava garantido, por isso, mãos à obra.

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“O que as avós sabem fazer é muito valioso e pode ser transportado para a contemporaneidade”, afirma Susana. Voltamos ao início, às tais luvas pouco católicas. A convicção verbalizada agora é a mesma de quando as primeiras avós se juntaram no Centro Paroquial de São Paulo, mesmo atrás da igreja. Começaram 20, hoje estão inscritas 70. Afinal, se os naperons brancos já deram o que tinham a dar, as avós que os faziam ainda podem deitar as mãos a outro tipo de peças. O design nunca foi o fim, foi sempre um meio.

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Fernanda, a avó que é uma estrela

Fernanda Martins, ou Fernandinha, como é conhecida entre o Bairro Alto e o Cais do Sodré, foi uma das primeiras a arregaçar as mangas. Aos 80 anos, é de longe a avó com mais genica. Entre o casamento e a emancipação, escolheu a segunda, sempre gostou de dançar e chegou a ser campeã de vendas da Tupperware (o grupo de vendedoras a que pertencia chamava-se As Rolinhas). Onde vai é a estrela. Não foi à toa que a escolheram para protagonista da primeira campanha d’A Avó Veio Trabalhar. Para as viagens, festas e workshops nunca lhe falta pedalada. A agenda, essa sim, ressentiu-se. Tem menos tempo para ver televisão, para cuidar da coleção de bonecas que guarda em casa e para os solitários passeios de elétrico. Na realidade, não há espaço (nem horas) para ter grandes saudades desse tempo. Entre aulas de natação, ginástica e o trabalho no atelier, o sobe e desce mudou-lhe a vida.

Fernanda Martins, de 80 anos,foi uma das primeiras a fazer parte d’A Avó Veio Trabalhar. © Divulgação

Das luvas aos biscoitos sexuais

Ao fim de quatro meses de projeto, nasceu o primeiro workshop. Menos de um ano depois, um espaço próprio que também é loja, na Rua do Poço dos Negros, altura em que A Avó Veio Trabalhar ganhou um segundo polo, em Campo de Ourique, também em Lisboa. “O desafio é constante. Hoje, já percebem que o que fazem é diferente de tudo o resto”, diz Susana. Tirar as avós da zona de conforto é uma missão e isso consegue-se de duas maneiras.

A primeira é estimulando a criatividade. De novo, as famosas luvas, bordadas com caveiras. Para algumas, foi um choque. Agora, ensinam os mais novos a bordar com linhas florescentes sobre fotografias serigrafadas em pedaços de tecido. Onde é que estas avós já vão? A segunda coleção levou aquelas almofadinhas que normalmente estão no canto de sofá para outro nível. Sob a orientação criativa de Susana e Ângelo, do simples tricot fizeram verdadeiras peças statement, misturando cores improváveis e franjas exageradas. Atualmente, trazem as próprias ideias e o que é moderno e fresco já não lhes causa qualquer estranheza. Isto serve para os unicórnios feitos com restos de tecidos mas também para os biscoitos em forma de “pombinha” e “pilinha” que fizeram de propósito para vender no último Arraial Lisboa Pride.

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A segunda forma é pela via das novas experiências. Para Susana e Ângelo, mal se vislumbraram os primeiros workshops dados pelas avós, uma coisa ficou logo certa: tinham de ser em sítios que elas não frequentassem. Dito e feito. As primeiras salas de aulas foram bares e cafés bem modernos. Ou seja, pôr as avós a desbravar a cidade, num primeiro momento. Depois, o país. Em abril de 2016, A Avó Veio Trabalhar rumou ao Porto para um workshop de bordado sobre fotografia no Maus Hábitos. Foi a primeira viagem de avião para quase todas. “Outro grande desafio que temos: olhar para elas como pessoas sem idade e fazê-las desabrochar. Às vezes, a tendência é proteger, tal como se faz com as crianças, mas isso impede o crescimento”, diz Susana. A dose tem-se repetido e nem sempre é preciso ir muito longe.

No ano passado, as avós associaram-se à Zomato e publicaram reviews de mais de 10 restaurantes. Pelo segundo ano consecutivo, A Avó Veio Trabalhar marcou presença no Lisboa Arraial Pride, no arraial propriamente dito e na marcha. Na última edição, teve direito a veículo próprio. Quem as viu e quem as vê. Longe do atelier, fazem planos juntas. Vão ao cinema, ao teatro e a concertos, para muitas uma realidade distante até há bem pouco tempo.

Vídeo cedido por Pedro Rodrigues

Praticamente, sempre que viajam é para ensinar. Perceberam cedo que o interesse em aprender a bordar, tricotar e costurar vinha de onde menos esperavam. Nos workshops aparece de tudo: adolescentes, adultos de meia idade, homens e mulheres. O ganho é quase sempre duplo — aprendem a técnica e ainda desfrutam da companhia. No último verão, cerca de 10 avós foram parar a Cem Soldos, resultado de uma colaboração do projeto com o festival Bons Sons. “Foi uma experiência que nos mudou a todos”, resume Susana. Na realidade, a ida a Tomar esteve mais perto de ser uma viagem de finalistas do que propriamente um passeio do centro dia, até porque deste último todos fogem a sete pés. Quanto ao que aconteceu durante a viagem, os intervenientes parecem ter feito um pacto de silêncio. O que acontece em Cem Soldos fica em Cem Soldos, está visto.

Já este ano, apareceu Madrid no calendário. Alguns membros da equipa foram até ao país vizinho para marcar presença na Bienal Iberoamericana de Design. A Avó Veio Trabalhar esteve nomeada e voltou de lá com uma menção honrosa. Com isso e com umas quantas histórias passadas em beliches de hostel.

Domingo Salgado, um avô entre avós

Tem 71 anos e desde o primeiro dia que é o único homem da equipa. Em vez de bordar e costurar, artes que nunca chegou a aprender, Domingo dedica-se a outras técnicas. Uma delas exige destreza com a agulha de crochet. A esmirna é um preceito utilizado na tapeçaria e o avô é a melhor pessoa para executar a tarefa. No final, é ver os tapetes farfalhudos ganharem forma. Na serigrafia também não se sai nada mal, embora a especialidade sejam mesmo aqueles trabalhos de paciência. Qualidade que não lhe falta, por sinal. No meio dos bate-bocas do mulherio, o avô é perito em manter a compostura. Introvertido e de fazer poucas ondas, é muitas vezes apanhado a rir para dentro.

Dia em que A Avó Veio Trabalhar tenha um prémio de assiduidade, é ele que o leva para casa. Domingo já frequentava o Centro Paroquial de São Paulo antes do design social bater à porta da freguesia. A mulher juntou-se à equipa há coisa de um ano, depois da reforma, mas prefere ficar no recato do lar a trabalhar nas peças. Quanto a ele, daqui ninguém o tira.

Domingo Salgado, o único avô a fazer parte da equipa, por enquanto. © Pedro Rodrigues

As avós estão na moda. E no teatro

“Mais do que mães, avós, maridos e mulheres, aqui há espaço para a identidade pessoal de cada um”, explica Susana. Desde o primeiro dia que as avós têm explorado outros talentos. Fernanda já demonstrou uma apetência especial para posar para as objetivas, mas o potencial artístico não se esgota aqui.

O último projeto foi em cima de um palco, em parceria com os vizinhos Teatro Praga. O texto não pedia mais do que quatro personagens e foi levado a cena no início de julho, no festival Lusco-Fusco. As reposições de Max e René não tardam, há uma em agosto e outra em setembro. As avós já passaram também pelo Festival Silêncio e, no ano passado, a terceira coleção foi feita em parceria com alunos de Design de Moda da Faculdade de Arquitetura de Lisboa. O resultado? Quinze camisolas desenhadas por uma nova geração de designers e executadas por quem mais sabe.

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“Old is the new young”

Cá dentro e lá fora. É comum encontrar voluntários que chegam de outros pontos da Europa e também do outro lado do Atlântico para trabalhar com as avós. As coleções e campanhas precedem-nas e dão nas vistas onde quer que sejam divulgadas. Para Susana e Ângelo, investir na imagem do projeto foi sempre uma prioridade. “O facto de vivermos para A Avó Veio Trabalhar faz com que invistamos no projeto de outra forma e permite-nos ter uma estética constante”, afirma Ângelo.

Os apoios

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O projeto arrancou em 2014 com um financiamento de 34.000€ do programa BIP/ZIP. O primeiro ano estava garantido. Em 2015, o mesmo programa libertou 50.000€. Entretanto, a ajuda começou a vir também de privados. Uma parceira com a Corega valeu cerca de 7.000€, enquanto a Fundação Calouste Gulbenkian já apoiou A Avó Veio Trabalhar com 10.000€. A Junta de Freguesia da Misericórdia também entra nestas contas, com um total de 4.000€. Atualmente, a sustentabilidade do projeto está comprometida. A uma renda de 500€, referente à loja da Rua do Poço dos Negros, há que somar uma despesa de 700€ por mês só em material.

Isso passa por trabalhar com bons fotógrafos, mas também por tirá-las da sua zona de conforto sem descurar o bom gosto. Slogans como “Old is the new young” ou “Tesão por ser quem sou” são só dois exemplos. É esta direção criativa, aliada ao talento das avós, que faz a diferença e atrai curiosos. Além do Zomato, também o Airbnb quis associar-se. A par do alojamento, a plataforma já disponibiliza alguns roteiros turísticos em Lisboa. Um eles passa pela loja do projeto e inclui um workshop.

Há uns meses, os dois mentores também foram surpreendidos com um pedido sui generis. Dino Gonçalves, decorador, encomendou várias flores em tecido, com 60 centímetros de diâmetro. Perceberam depois que o destino das peças era um evento em Cannes, na Riviera francesa. Na liga dos pedidos inusitados entra ainda o de uma americana que veio casar a Portugal. Quis que fossem as avós a fazerem os convites, inspirados nos lenços dos namorados. O resultado primou pela originalidade. Foram serigrafados, pintados a aguarela e bordados.

Patrícia, a jovem avó

Mais do que bordados e serigrafias, é “família” a expressão que Patricia Soldatelli mais usa quando fala d’A Avó Veio Trabalhar. Há pouco mais de um ano, mudou-se do Brasil para Portugal e foi quando passou um mês e meio em Lisboa, para tratar da papelada, que tropeçou na loja do Poço dos Negros. Foi amor à primeira vista. “O projeto não é só esta vitrine, é amor e compreensão”, afirma. Tem 57 anos e, mesmo com três netos, pertence a outra geração.

Fala em “mulheres guerreiras”, em histórias de vida pesadas que ainda hoje a impressionam, em analfabetismo, em pobreza e em estados de depressão. A cumplicidade entre as avós é grande. Guardam o segredo de quem já usa fralda mas tem vergonha de contar. Patrícia conta a história da avó Tina que, aos 85 anos, aprendeu a bordar aqui mesmo na loja, à beira da cegueira completa. Os laços estendem-se às famílias, mas não a todas. No início do ano, a notícia da morte de uma das avós chegou com uma semana de atraso. “Nem pudemos ir ao velório”, desabafa.

Patrícia Soldatelli: a avó de 57 anos é a mais nova do grupo. © Pedro Rodrigues

Mas as alegrias compensam as partes más, como quando uma das avós, incrédula, corou quando Patrícia lhe falou em arranjar um namorado. A maioria não previa chegar a esta idade e ter algo que as apaixonasse. “Encontrei uma outra família e isso não tem preço”, conclui Patrícia.

“Follow the Grannie”, nos passeios e no futuro

Projetos para o futuro não faltam. Follow the Grannie foi a última grande novidade. São passeios que levam grupos de turistas a conhecer as redondezas e que acabam, invariavelmente, em convívio, na casa de uma das avós. Na próxima semana, algumas viajam até aos Açores para marcar presença na edição anual do Mercado Urbano de Artesanato. Antes disso, as avós apresentam a nova coleção, a 27 de julho, no café vizinho Hello Kristof. Será a sétima a ver a luz do dia.

Depois das férias, voltam à carga logo em setembro. Primeiro no ESTAU, festival de arte urbana em Estarreja, depois a tentar a sorte no Impact Generator, dia 14, no Teatro Thalia, em Lisboa. Neste último, A Avó Veio Trabalhar precisa do pitch perfeito para chamar a atenção dos investidores. O objetivo é só um: expandir o projeto a outras zonas da cidade e do país.

Avós são um bem precioso e parece que estão a escassear no polo de Campo de Ourique, por isso, também em setembro, oficializa-se a abertura de vagas. O espaço do Poço dos Negros é que está a ficar pequeno para tantas mãos. Os dois mentores andam à procura de um novo poiso, mas sem perder a esperança de encontrar um mecenas que possa ceder um espaço para a nova morada. Enquanto isso, ainda há outro projeto na calha. A criação de um novo polo, só para homens, caminha a passos largos. Tudo porque os avôs também querem trabalhar e não têm tempo a perder.