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O português devora-se a si mesmo

A ambição da língua portuguesa é poder ser falada sem necessidade de abrir a boca. A manter-se a tendência, chegará um tempo em que será incompreensível até para os próprios portugueses.

Os portugueses costumam estranhar que compreendam sem dificuldade o português falado no Brasil e o espanhol, mas que brasileiros e espanhóis não sejam capazes de perceber o português de Portugal. Esta falta de reciprocidade é, muitas vezes, atribuída, ao “jeito natural para as línguas” dos portugueses (um atributo imaginário que faz parte da nossa auto-imagem) e a uma suposta incapacidade congénita de brasileiros e espanhóis para compreenderem e se expressarem noutras línguas.

Mas se fizermos um pequeno esforço de abstracção e distanciamento e nos ouvirmos de forma analítica, emerge uma explicação mais plausível: a pronúncia do português falado tende a ser impenetrável. Em contraste com o português do Brasil e o espanhol, a maior parte das sílabas do português de Portugal são fechadas e os “s”, em vez de sibilarem, soam como “ch” e “j” (o que os brasileiros pronunciam como “áss óbráss”, nós pronunciamos como “ajóbraje”).

O website do Instituto Camões, ao comparar a fonética das pronúncias do português dos dois lados do Atlântico, indica que “a mais notória diferença em relação ao Português do Brasil diz respeito às vogais não-acentuadas que são muito mais audíveis no Português Brasileiro do que no Europeu, sendo, nesta variedade, muito reduzidas, o que leva, por vezes, à sua supressão. Esta característica do Português Europeu tem como consequência que os estrangeiros compreendem melhor a pronúncia de um brasileiro do que de um português, sentindo, neste último caso, que a língua parece ter só consoantes”. Como pode um brasileiro perceber que o som “froch” emitido por um português corresponde à palavra “feroz”, que do outro lado do Atlântico se pronuncia como “féróiss”?

Quando um grupo de portugueses se desloca ao estrangeiro, alguém que os ouça falar entre si e não tenha familiaridade com o português, é tentado a atribuir-lhes origem, não latina, mas eslava. A sugestão poderá parecer tonta, mas a inaudibilidade das vogais e a abundância dos sons “j” e “ch” explica a confusão.

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A ponte que une a ilha de Krk ao continente é sólida, apesar de na sua construção não terem sido usadas vogais

Um dos momentos mais inspirados do website de fake news The Onion surgiu no rescaldo dos conflitos nos Balcãs, com o anúncio pelo Presidente Clinton de uma operação humanitária de emergência na Bósnia, consistindo no envio de dois C-130 que iriam fazer o lançamento de 75.000 vogais, de maneira a tornar os nomes locais mais fáceis de pronunciar. Com efeito, a toponímia e a onomástica da ex-Jugoslávia são avaras em vogais: na Croácia temos a ilha de Krk, na Bósnia-Herzegovina encontramos a cidade de Brčko e as aldeias de Crnač, Crveni Grm, Crveno Brdo, Dvrsnica, Podcrkvina, Trnčići, Tršće e Tvrtkovići, e, claro, a Republika Srpska, a entidade sérvia da Bósnia-Herzegovina. A onomástica bósnia também é parca em vogais: na Idade Média houve dois reis bósnios com o nome de Tvrtko e, em tempos mais recentes, há a assinalar um futebolista chamado Tvrtko Kale, que quando foi jogar para Israel mudou, compreensivelmente, o nome para Dreshler Kale.

No servo-croata há vocábulos como “crkva” (igreja), “mrkva” (cenoura) “trg” (mercado), “žrtva” (vítima) ou “opskrbljivač” (fornecedor); a língua checa tem “zmrzlina” (gelado), “smrt” (morte), “prst” (dedo) ou “čtvrtek” (quinta-feira); o eslovaco, que partilha muito vocabulário com o checo, tem “štvrt” (um quarto – no sentido de 1/4) ou “prš” (chuva), podendo revelar-se, no modo imperativo, de uma secura desencorajante, com “vrč” (rosna), “plň” (enche), “strč” (põe ou coloca) e “mlč” (cala-te).

Assim, diz-se “parlijmo” por “paralelismo” e “perlema” por “problema”. Mais uns anos por esta senda e “paralelismo” e “problema” ficarão reduzidos a “prljmo” e “prlma”

Mas o caso de Portugal é bem diferente: dificilmente poderia mobilizar-se uma operação internacional de fornecimento de vogais a um país que as possui em abundância mas faz pouco caso delas e até suprime sistematicamente sílabas, sobretudo quando as palavras são longas. Assim, diz-se “surjão” por “cirurgião”, “dzenvlemento” por “desenvolvimento”, “eletsista” por “electricista”, “chtrordnário” por “extraordinário”, “lejlação” por “legislação”, “majtratura” por “magistratura”, “parlijmo” por “paralelismo”, “perlema” por “problema”, “persamento” por “processamento”, ou “sialista” por “socialista”. Mais uns anos por esta senda e “paralelismo” e “problema” ficarão reduzidos a “prljmo” e “prlma”.

O fenómeno é agravado pela voga de descartar a acentuação que distingue, na 1.ª pessoa do plural dos verbos da 1.ª conjugação (terminação em “ar”), o pretérito perfeito do presente e que leva a que se diga “Ontem jantamos muito tarde”, ou “Tratamos desse assunto na reunião da semana passada”. O inenarrável Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), invocando este uso oral cada vez mais generalizado, aproveitou para tornar facultativo o uso do acento agudo nesta situação. Daqui resulta que a frase “matamos o cão” passa a designar, indistintamente, algo que aconteceu (quiçá por acidente) e aquilo que decidimos fazer agora, o que dá ideia da confusão adicional que estes usos e estas “regras facultativas” trazem à forma nebulosa como comunicamos.

Os entusiastas do AO90 alegam que o acordo tornará mais fácil a aprendizagem do português, o que não só é um argumento falacioso (para atingir esse fim melhor seria apostar no Português Simplificado para SMS, expurgado das irregularidades, complexidades e idiossincrasias que fazem parte da natureza de cada língua), como não toma em consideração que, com ou sem acordo, o sério obstáculo para os estrangeiros é depararem-se com uma língua que soa frequentemente como móveis a serem arrastados ou papel a ser amarrotado.

Paisagem de Trájmontj, região que ao contrário do que a sonoridade do nome sugere, não fica na Bósnia

Ana Cristina Marques/Observador

Mas ao mesmo tempo que se assiste à tendência geral de fechamento das vogais átonas, há muitas pessoas a acentuar sílabas que não o deveriam ser: assim, temos “águarela” (por afinidade com “água”), “alárgamento” e “lárgura” (por afinidade com “largo”), “alértar” (por afinidade com “alerta”), “corrétores da bolsa” (por confusão entre correcção e corretagem), “cósmopolita” (por afinidade com “cosmos”), “cóveiro” (por afinidade com “cova”), “ensáiar” e “ensáista” (por afinidade com “ensaio”), “entusiásmado” (por afinidade com “entusiasmo”), “envélhecimento” (por afinidade com “velho”), “géstual” (por afinidade com “gesto”), “históriadores” (por afinidade com “história”), “letárgia” (por afinidade com “letárgico”), “máquinista” (por afinidade com “máquina”), “méstrádo” (por afinidade com “mestre”), “páctuar” (por afinidade com “pacto”), “resérvistas” (por afinidade com “reserva”), “rótulagem” (por afinidade com “rótulo”), “táxista” e “táxímetro” (por afinidade com “táxi”), ou “vétar” (por afinidade com “veto”). Estas pronúncias são usadas regularmente pela elite culta que domina os media (locutores de rádio e TV, jornalistas, políticos, comentadores, académicos, empresários, sindicalistas, artistas, escritores) e não representam regionalismos nem dizem respeito a grupos da sociedade com menor instrução – aqueles que por vezes são ridicularizados por dizerem “drógádos”.

Se nos exemplos acima é possível discernir o que terá induzido a acentuação aberrante, outros há que parecem ser aleatórios: é o caso de “águentar”, “Bábel”, “báctéria”, “drácôniano”, “máquilhar” e “máquilhagem”, “plátaforma”, “prótagonistas”, “réssurreição”, “rétórica”, “sóviético”, “subsérviência” e “véxar”, “véxame” e “véxatório”. “Hepatite” ganha dois acentos bem sonoros e transforma-se em “hépátite”, o que poderá explicar a dificuldade em combater a doença: a medicamentação para a “hépátite” talvez seja ineficaz contra a “hepatite”. No campo da saúde, regista-se também um “chtrórdnário” aumento da incidência das “álérgias”, o que se deve não só aos pólenes que andam pelo ar, mas também a acentos que andam a pairar e poisam onde menos se espera . Outra palavra agraciada com dois sonoros acentos caídos do céu é “máriónétas” – mas sendo as marionetas, por definição, inertes e destituídas de iniciativa própria, é natural que não reclamem.

A importância do “flectómetro”

Todavia, a tendência dominante é, indiscutivelmente, no sentido do fechamento e é previsível que o AO90, ao decretar a supressão das consoantes (supostamente) mudas que desempenham a função de abrir a sílaba, venha intensificar o processo de fechamento. O efeito poderá não afectar imediatamente as palavras de uso quotidiano (como “afetar”), mas as crianças e adolescentes com cultura pouco vasta que sejam confrontados com palavras menos frequentes como “manufaturas” ou “intercetores”, não as pronunciarão como “manufáturas” e “intercétores”. E até os mais crescidos e cultos, quando se depararem com um “fletómetro” pronunciá-la-ão sem acentuar a primeira sílaba, pois não saberão que tal vocábulo se grafava originalmente como “flectómetro”.

Não faltam casos documentados noutras línguas em que as alterações na ortografia induziram alterações na pronúncia. Veja-se o que aconteceu na Inglaterra seiscentista, quando a paixão pelos clássicos latinos levou a um processo inverso àquele que o AO90 advoga: a reintrodução de consoantes, presentes nos étimos latinos, nos vocábulos ingleses recebidos do latim através do francês, onde essas consoantes já não estavam presentes. Assim, a palavra inglesa “aventure” transformou-se em “adventure”, “dette” em “debt”, “doute” em “doubt”, “iland” em “island”, “perfet” em “perfect”, “receit” em “receipt”, “verdit” em “verdict”. O resultado foi que as consoantes (supostamente) mudas introduzidas passaram, pouco a pouco, a ser pronunciadas (com excepção do “s” em “island” e do “b” em “debt”).

É intrigante que o Prof. Malaca Casteleiro, um dos pais do AO90, manifeste publicamente a sua inquietação e desagrado face ao fechamento progressivo da pronúncia do português de Portugal e, ao mesmo tempo, tenha contribuído decisivamente para criar e pôr em prática um acordo ortográfico que agravará esse fenómeno.

Não menos intrigante é o critério que permitiu decidir, à luz do AO90, se uma consoante é muda: há muitas pessoas a pronunciar o “c” de “erecção” e “espectro”, ou o “p” de “acepção”, “apocalíptico”, “céptico” e “Egipto”, embora o AO90 tenha entendido que estas consoantes são mudas. Terá a insigne Academia efectuado um abrangente e rigoroso inquérito fonético junto da população de forma a determinar, palavra a palavra, se há alguma consoante que não é pronunciada? E nesse caso, qual a percentagem de falantes que determina a preservação ou supressão de uma consoante? Bastará uma maioria simples de 51% ou será necessária uma maioria qualificada de 2/3? Ou será que se decidiu tudo em petit comité, ou apenas atirando uma moeda ao ar? Seja como for, subjacente a tal tomada de decisão estaria sempre uma simplificação grosseira: a de presumir que uma consoante ou é pronunciada clara e sonoramente ou é completamente omitida, quando, em português, como noutras línguas, existem, entre os dois extremos, várias gradações.

Como se não bastasse a Grande Esfinge de Gizé ter ficado sem nariz, também o Egipto perdeu o “p”

AFP/Getty Images

Por outro lado, é revelador confrontar a obsessão do AO90 em eliminar letras que não se pronunciam com o que se passa noutras línguas. Os falantes de inglês não pronunciam o “p” inicial nas muitas dezenas de palavras correntes começadas por “ps”, como “psychology”, “psoriasis” ou “pseudonym”, nem os “s” finais de “Illinois” e “Arkansas”, nem o “ps” de “corps”, nem os “gh” de “eight”, “fight”, “Hugh”, “right”, “though”e “tight”, mas não parecem incomodados por estas letras supranumerárias. No dinamarquês há muitas situações em que os “d” e os “g” são apenas aflorados ou são completamente silenciosos. O francês não só regurgita de consoantes não pronunciadas (nomeadamente “s” e “t” no fim de palavras) como usa as letras de forma francamente perdulária e é de crer que se os arquitectos do AO90 obtivessem carta branca para “aperfeiçoar” a língua de Molière, teríamos “client” convertido em “cliã”, “droit” em “druá”, “mot” em “mô” e “français” em “francé” – uma formidável poupança de tempo e tinta.

Claro que não é o lastro de consoantes (supostamente) mudas que dificulta a aceitação de uma língua nas instâncias internacionais ou constitui empecilho à sua aprendizagem. Mas enquanto há quem se preocupe em introduzir um extenso quadro de alterações arbitrárias, inconsistentes e ruinosas destinadas a resolver dificuldades e incompatibilidades que nunca existiram, o desleixo generalizado na pronúncia do português vai fazendo estragos sérios: é no fechamento sistemático das sílabas átonas e na subsequente compactação das palavras do português de Portugal que está o principal “perlema”.

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