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Rita Carmo

Rita Carmo

Sérgio Godinho: "Esta nação nem sempre é valente mas temos de puxar por isso"

Um novo álbum com o título "Nação Valente" é editado no dia 26. Antes, o escritor de canções fala da sua arte e da arte de ser português. "Somos bipolares", diz. Uma entrevista de Bruno Vieira Amaral.

Nação Valente é o 18º álbum de originais de Sérgio Godinho, o primeiro desde 2011. Durante o interregno, não esteve parado: estreou-se como ficcionista (publicou um livro de contos e um romance) e colaborou com o amigo Jorge Palma num disco e numa série de concertos. Agora, desafiou vários compositores, incluindo José Mário Branco, David Fonseca e Pedro da Silva Martins, a entregarem-lhe músicas para que se pudesse apropriar delas. Conversa com uma instituição nacional que quer continuar a criar.

A capa de “Nação Valente”, de Sérgio Godinho (Universal)

Ao fim de quase cinquenta anos de carreira, o que é que o motiva?
Em primeira análise, o que me motiva, e falamos do caso das canções, mas também nas outras escritas, é desde logo o acto de criar. Foi algo que, desde muito cedo, se tornou essencial na minha vida. É uma força, um impulso vital. Desde miúdo que inventava coisas. Fazia pequenos textos, as minhas redacções – como se dizia na altura – eram bem escritas. Mas isto vem um bocadinho da minha educação – também da minha curiosidade porque tinha dois irmãos e não era a mesma coisa – mas vem da minha educação, dos meus pais, quer em termos musicais, quer de leitura. Quando comecei a ter o prazer de compor, de perceber que mesmo sendo um auto-didacta conseguia alinhavar acordes de guitarra que resultavam numa melodia e que resultavam numa canção, tive essa necessidade criativa. No caso das canções, há uma outra vertente que é muito importante, que é a da performance, do estar nos palcos, de montar as canções com outros músicos.

É isso que faz com que seja necessário renovar o stock, criar mais para transportar isso para o palco?
É vontade de criar mais porque é vontade de criar mais. O transportar para o palco é uma consequência. É evidente que a vida de uma canção faz-se de várias fases. A primeira é de solidão. Neste disco é diferente porque há uma solidão partilhada, há muitas parcerias musicais, com músicas de outros e letras minhas. Depois há a fase da gravação, que é uma espécie de uma fixação do trabalho, mas também é um ponto de encontro. Tenho um sentimento muito contraditório, muito ambíguo em relação à gravação porque é uma coisa que cansa. Repetimos muitas vezes os pequenos detalhes, as coisas fazem-se por faixas, repete-se exaustivamente. E eu que sou impaciente noutros sectores, ali tenho muita paciência, ou persistência.

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É perceber que é necessário.
É perceber que é necessário. Se tem de se fazer, tem de se fazer. Há uma sensação terrível que é a de fazer uma coisa para a vida e depois perceber que aquilo não ficou bem e depois pensas se tivesses feito melhor agora tinhas mais prazer em ouvir isto. Isto vale para tudo.

A diferença em relação à literatura é que nas canções depois tem-se oportunidade de as refazer em palco.
As artes performativas permitem isso. Já um filme, ou um quadro, está feito. Diz-se que o [Pierre] Bonnard ia às escondidas para o museu que tinha obras dele e quando os guardas não estavam a ver ele retocava coisas dos quadros. Quando foi apanhado, defendeu-se a dizer que os quadros eram dele.

[“Noite e Dia”:]

Há algum trabalho que hoje, ao olhar para trás, tivesse vontade de alterar?
Muitas vezes vou alterando porque pego nessas canções e dou-lhes uma volta. Geralmente são mudanças formais de arranjos, de andamentos, etc. A canção “Espectáculo” já teve versões só com guitarra e voz, teve versões mais rock, que começaram com os Clã, depois até reproduzimos nos nossos espectáculos durante muito tempo. Portanto, as canções têm várias vidas. Curiosamente uma das canções que até é das mais conhecidas, “Com um Brilhozinho nos Olhos” [do álbum Canto da Boca, de 1981], eu mudei-a porque na altura em que a fiz ainda não havia Totoloto.

Actualizou a letra que passou do 13 no Totobola para o 6 no Totoloto.
Aí foi mesmo uma mudança do conteúdo embora não altere o sentido da letra.

Aí revela-se um lado seu que é muito apelativo para quem gosta de o ouvir que é esse lado lúdico, o brincar com as palavras.
E essa canção tem um lado lúdico muito forte, tem muitos jogos de palavras. É uma canção sobre o gozo de estar juntos, de um novo amor, tem muitas imagens lúdicas, “fizemos o quatro e pintámos o sete”. É uma canção feliz.

Em vários sentidos.
O que as canções permitem são essas releituras. Por exemplo já estou a pensar em levar para o palco estas canções porque este novo disco é muito acústico, com excepção de duas canções, que é a “Mariana Pais, 21 Anos” com música do Zé Mário e letra minha, que tem um quarteto de cordas e uma harpa, e a canção “Tipo Contrafacção” [música de Nuno Rafael, que também é o produtor do álbum], que tem os sopros, as restantes canções têm poucos instrumentos, são bastante cruas, e a voz está bastante perto. Está muito presente e está bastante perto, o que foi propositado, cantei um bocadinho mais perto do microfone.

Falemos então deste novo álbum, em que há várias parcerias, como disse. O que é que há nele que é distintivamente do Sérgio Godinho e o que é que há de novo?
Neste álbum levei mais longe algo que já tinha feito noutro álbum, no Coincidências [1983], que foi as parcerias, geralmente com música de outros e letras minhas, embora no Coincidências haja uma excepção, uma música minha com letra do Chico Buarque. Eu queria que o Chico Buarque me fizesse uma letra e mandei-lhe a música. Chama-se “Um Tempo que Passou”. Nesse caso havia uma direcção, que era com músicos brasileiros, como o Ivan Lins. Aqui, quis experimentar, quis pessoalizar canções que tivessem outras origens. Acabei por pedir a vários compositores para me darem uma música.

"Há várias canções minhas que têm narrativas, que se colocam num determinado contexto ou que são frescos, como por exemplo, o 'Lisboa que Amanhece', que não tem uma narrativa."

Foi o Sérgio que pediu?
Sim, sim. A excepção foi o “Noite e Dia” [música de Filipe Raposo].

O desafio era eles entregarem as músicas e o Sérgio apoderar-se delas?
Apoderar-me. A palavra é mesmo certa. Esse apoderar é fazê-las minhas. Ao dar-lhes um tema, ao dar-lhes uma letra, um outro rumo mais concreto, porque uma música é sempre um bocado abstracta, pessoalizei-as inevitavelmente. Isso até me foi dito pelos compositores. Alguns dos quais me disseram: “Bolas, isto agora é uma canção tua.” Para mim isso é inevitável porque escrevo de uma maneira pessoal e também sou eu que as canto, como é evidente, e as canções tornam-se minhas. O que é engraçado é que, a certa altura, já não sinto que estou só a trabalhar com material alheio. Sinto que é também uma música minha. Absorvo muito isso. Canibalizo.

Aquilo a que se pode chamar o seu cunho pessoal, nessa canção, “Noite e Dia”, é o de pegar nas histórias das pessoas comuns e retratá-las nas suas canções.
Mesmo a “Mariana Pais”, que aliás está no próprio título, 21 anos de idade, é uma rapariguinha que tem uma sede de ter mundo, como eu tive nessa idade, e continuo a ter, mas hoje tenho mais mundo. Mas aquela sede de ter mundo, e que não tem de ser sempre coerente, profunda, ela diz: “os meus sonhos mordem pão de trigo e mordem pão-de-ló”, mas também diz “penso no futuro / em morder pão duro / e ter ao espelho as incertezas”, ela começa também a ter consciência do futuro e do que é que vai acontecer. Esse é um retrato, até com nome e até nome de família. Faltou o número de contribuinte e o cartão de cidadão [risos].

Nesse caso, dizia que há uma identificação com aquilo que sentia quando tinha aquela idade, mas no caso “Noite e Dia” [conta a história de um homem com dois empregos], que imagino que é uma experiência que nunca teve, de onde é que vem isso? É da observação, da empatia, da imaginação?
Eu diria que é quase um pequeno conto. Embora não com princípio, meio e fim. Há várias canções minhas que têm narrativas, que se colocam num determinado contexto ou que são frescos, como por exemplo, o “Lisboa que Amanhece”, que não tem uma narrativa.

Vai captando quadros.
Sim, quadros da noite de Lisboa.

[“Tipo Contrafacção”:]

Essa dimensão narrativa é uma das coisas pelas quais as pessoas o reconhecem.
Mas não conto só histórias, há canções que são mais do foro filosófico ou vivencial. “O Primeiro Dia” não conta propriamente uma história e muitas canções minhas não contam uma história e, sobretudo, não contam uma história com princípio, meio e fim. Agora, durante quase toda a minha vida nas canções tive sempre muitas personagens, até com nomes.

Etelvina, Rita, Barnabé.
O Casimiro, a Alice no País dos Matraquilhos. Aliás, fizeram-me essa pergunta quando publiquei o primeiro livro de contos, o Vidadupla, em que nenhuma das personagens tem nome. E eu fiz isso propositadamente. Tive que quebrar com isso dos nomes. Depois no romance já pus nome às personagens.

Isso de dar nome às personagens será um dos segredos para ter conseguido aquilo que é muito difícil que é ser popular, chegar às pessoas, e ao mesmo tempo ser um escritor de canções bastante sofisticado?
As coisas têm de ter uma aparência de fluência. As canções são muito trabalhadas, mas têm de fluir. O princípio da canção “Grão da Mesma Mó” [primeira canção do álbum, com música de David Fonseca] tem uma fluência própria que é quase como se disparasse um tiro de partida.

É quase spoken word.
Sim, tem coisas de spoken word. “E do nada há uma luz que se acende. Não se sabe se vem de fora ou de dentro, apareceu”. E esse apareceu é como se fosse a porta de entrada para o resto do disco. Essa luz propaga-se para o resto das canções e é por isso que quis que começasse assim. Gosto muito dessa canção, é muito forte. Foi muito surpreendente o trabalho a partir da música do David Fonseca. Já me tinha cruzado com ele de outras maneiras. Fiz uma canção com eles nos Silence4 e até cantei no primeiro disco. E ele canta comigo também n’O Irmão do Meio, justamente “A Balada da Rita”, mas nunca me tinha cruzado com ele a este nível.

Lembrou agora O Irmão do Meio [álbum de duetos, de 2003] e falou da colaboração com os Silence4, mas houve outras, logo nos anos 90, em que de repente a então nova geração parece que o descobriu. Acha que o Noites Passadas [álbum ao vivo, de 1995] foi esse momento em que essa nova geração o descobriu e o viu quase como um mentor?
Acho que há uma transmissão à medida que se vai conhecendo as coisas. Houve uns anos, no início dos anos 80…

"O Zeca, claro, foi um desbravador, foi alguém que inventou do nada. Digo na minha crónica d’As Caríssimas 40 Canções que o Zeca abriu janelas onde nem paredes havia. Mas o meu estilo era outro. Nós, de certa forma, tivemos de inventar do nada. Nunca é do nada, obviamente."

Em que estava a fazer coisas muito diferentes.
Sim, jazz e tal, mas é também o tempo do Canto da Boca, etc. Bem, mas nos anos 80 quando entra a geração do Independente, havia ali uma tendência, que não era só do Indepenente, eram os críticos da altura, de que não havia nada para trás, estavam a inventar tudo.

Foi arrumado?
Não, nunca fui realmente arrumado. O que aconteceu é que nos anos 90, o pessoal que cresceu a fazer música olhava para trás, e continua a olhar, a ver o que existia e nutre-se disso. Isso é dito recorrentemente em entrevistas e deixa-me contente, mas não é só em relação a mim, é em relação a outros. Houve música para trás. Nós, quando digo nós, sou eu, o Zé Mário, o Luís Cília, não tínhamos muitas referências. O Zeca, claro, foi um desbravador, foi alguém que inventou do nada. Digo na minha crónica d’As Caríssimas 40 Canções que o Zeca abriu janelas onde nem paredes havia. Mas o meu estilo era outro. Nós, de certa forma, tivemos de inventar do nada. Nunca é do nada, obviamente.

Havia muitas influências que não se limitavam à música portuguesa. Já falou em várias ocasiões da música brasileira.
A música brasileira, sem dúvida. A música francesa, era o tempo do Brel, do Brassens, etc, de certo modo, o Ferré, o Gainsbourg já aparece mais tarde, e também da música anglo-saxónica, o Bob Dylan, os Beatles e os Stones, os Doors, e tudo isso foram influências muito grandes. Por outro lado, o Kurt Weill, o teatro berlinense, era um mosaico de influências.

Foi também isso que o tornou mais apelativo para essa nova geração, essa mistura de influências, ou ser aquele escritor de canções que lhes ensinou que era possível escrever em português?
Acho que contribuí um bocadinho para isso. Acho que é um falso problema, mas eu próprio tive um certo bloqueio quando comecei e escrevi canções em francês.

O que é que o libertou?
Os químicos [risos]. Bastante fortes. O que me libertou foi ter percebido que a palavra mesa tem uma conotação afectiva para mim, lembra-me a mesa dos meus pais, dos meus avós, a palavra table [em francês] ou table [em inglês], por acaso a palavra até é a mesma, já é diferido. Eu sei que é aquele objecto…

Mas não há uma memória afectiva.
Não há. Isso tornou-se evidente para mim e libertou-me.

[“Artesanato”:]

É isso que o torna atento à linguagem das pessoas comuns? Há um fenómeno interessante que é o de, por um lado, o Sérgio estar muito atento à linguagem das pessoas e incorporá-la nas suas músicas, e, por outro lado, as pessoas também se apropriarem de expressões das suas canções. Hoje não há quem diga “Com um brilhozinho nos olhos” sem querer. É uma dinâmica rara.
Há um exemplo que já dei noutra entrevista, mas não faz mal porque eu sou só eu: eu tinha uma avó brasileira e uma bisavó, que viviam em casa da minha mãe, e a minha mãe perguntava-lhe “Então, como está?” E ela respondia-lhe “Cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas.” E eu nunca tinha ouvido esta expressão e nunca ninguém a tinha ouvido cá em Portugal. E eu pensei que isto dava uma personagem, um refrão [“Coro das Velhas”, do álbum Salão de Festas]. E pegou e hoje há muitas pessoas que a usam e passou a fazer parte da cultura popular portuguesa. Essa propagação claro que me dá gozo. As canções são feitas também para isso.

Outra das capacidades do Sérgio é a de analisar relações, as relações homem-mulher, e o seu conhecimento sobre as mulheres. De onde é que isso vem, é da experiência, da observação, da intuição?
Sempre lidei bem com o universo feminino. As mulheres têm mistério, como os homens têm mistério, como há mulheres que não têm mistério e há homens que não têm mistério. Digo isto porque há aquela coisa de certas pessoas, nomeadamente certos escritores, que diziam “ah, a mulher é um mistério insondável”, bem, quer dizer, ou não. Às vezes não é mistério nenhum e às vezes não é insondável. Eu sempre tive muitas amizades femininas, sempre me dei bem com a minha mãe, sempre me foi uma coisa natural. Os meus retratos geralmente são de mulheres que têm uma força própria, não são fracas. Pode-se dizer hoje em dia que tenho tantos amigos homens como mulheres.

Com as mudanças, pelo menos ao nível da tecnologia, nas relações das pessoas, acha que mudou alguma coisa essencial ou o que é essencial permanece? Pergunto-lhe de outra forma, olha para este tempo como sendo ainda o seu tempo ou já olha com alguma distância?
Cada qual encontra o seu tempo próprio. Há pessoas que estão completamente vidradas nos facebooks, nos telemóveis.

Não é o seu caso?
Facebook só tenho o oficial, que nem é gerido por mim. Tenho uma maneira de ir ao Facebook, não para ver tudo, mas aquilo que me interessa, mas não critico. Acho que há pessoas que fazem bom uso disso. Mesmo nalguns casos, pode ser positivo, mas noutros é completamente tola a maneira como as pessoas se expõem. E também os comentários, até noutras áreas, que se tornam um campo livre para a estupidez e a maldade.

Mas a tecnologia veio estimular ou veio só destapar a maldade que já estava lá?
As duas coisas. Ao destapá-la, estimulou-a. É um meio de exposição muito atraente. As pessoas depois arrependem-se, mudam de vida e já não dá para apagar. A Márcia tem essa frase fantástica na única canção que não é minha, “Delicado”, em que ela diz que “Quem quiser pintar passados / vai ter muito para emendar”. Isso aplica-se perfeitamente às redes sociais.

"Quando voltei depois de nove anos em que não podia vir ao meu país apeteceu-me viver aqui, com todos os seus defeitos. Tenho aqui o meu trabalho, a minha vida. Descobri também uma cidade, que é Lisboa, embora sinta que a minha raiz é o Porto, vim conhecer uma cidade que não conhecia."

Na canção “Nação Valente”, que dá título ao álbum, o título parece um pouco irónico, mas depois a letra é de crença.
Sim, de crença nas possibilidades.

É uma canção pariótica?
Não é patriótica. O que eu acho é que nós temos uma identidade enquanto portugueses. Eu sinto-me muito português e faço parte disso, mas sou um português cosmopolita, passei por outros países, senti-me bem noutros países, e ainda bem que vivi isso, e vivi bem, de um ponto de vista vivencial, porque às vezes vivi mal.

Continuou sempre a ser português?
Quando voltei depois de nove anos em que não podia vir ao meu país apeteceu-me viver aqui, com todos os seus defeitos. Tenho aqui o meu trabalho, a minha vida. Descobri também uma cidade, que é Lisboa, embora sinta que a minha raiz é o Porto, vim conhecer uma cidade que não conhecia. Tinha estado cá duas vezes efemeramente.

E escreveu-lhe esse grande hino que é “Lisboa que Amanhece”.
É curioso que no primeiro Voz e Guitarra foi cantado pelo Rui Veloso, que também é do Porto. Às vezes são os estrangeiros que vêem as coisas. Às vezes de forma explícita, como no caso do “Sampa”, do Caetano Veloso.

Sim, nesse caso é deliberado, como é que alguém de fora não se apercebe do que vê.
É alguém de fora a perguntar-se “como é que eu desvalorizei isto e não percebi nada?” Aí digamos que há o propósito de louvar uma cidade partindo do princípio que havia um narcisismo do baiano, que é uma coisa diferente do “Lisboa que Amanhece”, em que estou mais apagado, a canção é um fresco. Quanto ao “Nação Valente”, acho que é uma canção do pós-troika, do endividado, de estar numa gaiola, mas também tem uma crença, “há que ir em frente / Nação valente”, e nação valente não é dito de uma maneira irónica. Já depois de ter escrito a canção, Portugal foi apurado para o Mundial da Rússia e o título d’A Bola era “Nação Valente”. E eu disse “já me andam a roubar” [risos]. O refrão diz outra coisa que é muito importante que é fronteiras antigas, solidez nessas fronteiras, “fronteiras abertas / quero um país de ideias libertas”. E isto não vale só para o país, vale como atitude pessoal, que as nossas fronteiras pessoais têm de estar sólidas, mas também têm de estar abertas aos outros.

Pegando naquela questão de ser uma referência para uma nova geração, mas também de ser um portuense lisboeta, de ser também um sportinguista atípico, o Sérgio consegue atravessar a sociedade. Ou seja, é um portuense, mas as pessoas não o associam exclusivamente ao Porto.
Já agora com um pequeno apontamento. O ser sportinguista começou por ter um irmão mais velho que era sportinguista, ainda apanhei os “Cinco Violinos”. Eu não tenho necessidade de pertencer à força. Pertencer pode ser um dado adquirido, mas não para se ter essa ânsia de pertencer. E eu só por ser da cidade do Porto não tinha de ser do Futebol Clube do Porto. Porém, eu digo sempre que aprendi a ver futebol no Estádio das Antas, porque o meu pai era sócio e levava-me. Até agora não tenho nenhuma aversão ao FC Porto.

“O povo português foi muito submisso. Deixou-se estar. Nós estamos cheios de defeitos, mas temos de puxar pelo melhor” (foto de Rita Carmo)

Mas as pessoas revêem-se em si. Mesmo na questão política, toda a gente o conhece como um homem de esquerda, mas as pessoas olham para o escritor de canções, para o autor, e não estão a pensar nesse rótulo. Sente isso?
Sim. Até há pessoas que ficam espantadas quando sabem que eu sou do Porto porque não me identificam com nenhum lugar. Sou de toda a gente e não sou de ninguém, como dizia a canção. O que eu sei é que quero continuar a viver aqui, e que esta nação nem sempre é uma nação valente, mas que temos de puxar por isso. Acho que somos mesmo bipolares, mudamos de direcção muito rapidamente. Tenho uma canção que é “Só Neste País” [do álbum Ligação Directa, de 2006] que fala de transitar entre a euforia e a depressão, entre o granizo e a combustão. Somos um bocado bipolares. Temos de puxar um bocado por aquilo que é o melhor. Portugal não está perdido.

Acredita que não estamos condenados a desaparecer?
Acho que não. E não aconteceu aqui uma coisa que já começou a acontecer na Europa que é a ascensão de uma extrema-direita. Acho que aqui tão cedo não vai acontecer.

Até por razões históricas.
É uma questão histórica, sem dúvida. Tivemos muitos anos de salazarismo.

Também é de temperamento?
Talvez seja, mas nós também nos adaptamos. Fomos tão submissos durante tanto tempo. “Nós”, eu não porque me fui embora e me recusei a fazer a guerra. Eu não fui submisso. Eu e muita gente, mas o povo português foi muito submisso. Deixou-se estar. Nós estamos cheios de defeitos, mas temos de puxar pelo melhor.

Estreou-se tarde na literatura, mas a verdade é que correu esse risco.
Corri.

"Já plantei uma árvore, já tive um filho, já escrevi um livro [risos]. Quero continuar a criar, mas não sei para onde a criação me leva. Tenho um grande prazer no palco."

Alguma vez sentiu essa comparação negativa entre o Sérgio Godinho escritor de canções e o Sérgio Godinho escritor de ficção?
Quando se lê as minhas coisas, seja o romance, seja o livro de contos – tenho agora outro romance que estou a rever e que sairá em setembro – eu sou sempre confrontado com aquele tipo que faz canções muito boas. Mas não tenho medo de arriscar noutros territórios porque, uma vez mais, é uma necessidade criativa própria.

Mas tinha a noção de que era um risco?
Tinha, mas não tenho medo de correr esses riscos. Tenho de levar com isso. Por outro lado, também tive mais exposição por ser um nome conhecido. Mas não me favoreceu necessariamente em termos do olhar crítico. Nem estou a pedir isso. Não houve nenhuma condescendência, pelo contrário, houve um certo parti pris.

Diz numa canção deste álbum [“Grão da Mesma Mó”] que há ainda tanto a fazer. Depois da literatura, o que é que ainda há para fazer?
Já plantei uma árvore, já tive um filho, já escrevi um livro [risos]. Quero continuar a criar, mas não sei para onde a criação me leva. Tenho um grande prazer no palco.

Ainda é o que lhe dá mais pica, estar no palco?
Hoje e quase sempre, mas também a criação. Mas no palco é que as canções são confrontadas nas vibrações dos outros. Quando se escreve, a reacção é diferida, não é o mesmo que cantar uma canção em que a reacção é imediata, visceral. Quero também continuar a escrever ficção. Descobri também ali uma via.

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