A mutação dos “Quatro D”

A sociedade cosmopolita em que vivemos deixa prenunciar mudanças culturais e civilizacionais de grande alcance durante o século XXI. Lembremos as principais. As alterações demográficas e os problemas específicos das sociedades seniores, as alterações climáticas e os problemas de abastecimento local e segurança alimentar, as alterações dos mercados de trabalho e o desemprego estrutural nas faixas etárias mais jovem e mais velha, os riscos geopolíticos globais próprios de um mundo multipolar e os recursos crescentes despendidos em cooperação e segurança internacionais para controlar e mitigar o risco sistémico e moral dos atores nele envolvidos.

Nos últimos anos um grande desafio emerge sob a forma de uma nova economia associada ao universo das tecnologias da informação e comunicação, às plataformas digitais e às redes sociais, a chamada “transformação digital”. Esta transformação paradigmática pode ser designada como a mutação dos “Quatro D”: digitalização, desmaterialização, desintermediação, e o seu corolário lógico, o desemprego. O paradigma dos “Quatro D”, segundo a ideologia dominante, conduz-nos até à sociedade do conhecimento, ao capitalismo cognitivo e à economia dos bens comuns colaborativos. Enfim, na aparência, o melhor dos mundos!

O grande logro da sociedade e da economia colaborativas

É no interior deste complexo enquadramento global e tecnológico que emergem novas correntes de pensamento e geografias económicas mais inteligentes e imateriais associadas à internet e à tecnologia das redes e plataformas digitais. São movimentos liderados pelas gerações que se movem à vontade no ecossistema tecnológico próprio dos sistemas interativos de comunicação. A culminar esta pluralidade de correntes do pensamento em redor de uma economia das redes e dos recursos imateriais temos a revolução silenciosa da chamada “economia dos bens comuns colaborativos” (Jeremy Rifkin, 2014). Se quisermos, configura-se uma espécie de quarto sector pós-capitalista que cresce e alastra na zona de interface entre a economia pública dos bens e serviços mais convencionais, a economia social e solidária das instituições particulares de assistência e solidariedade social na sua aceção mais ampla, mas, também, a economia das organizações não-governamentais ligadas ao desenvolvimento local, ao ambiente e à cooperação e desenvolvimento e, bem assim, a novel economia dos bens comuns colaborativos ligada aos novos ecossistemas inteligentes de comunicação e com modelos de negócio mais cooperativos e partilhados.

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Nesta linha de argumentação, a “Sociedade Co” seria a sociedade do conhecimento, colaboração, comunicação, comunidade, comunhão, isto é, a sociedade dos comuns mas, também, da cooperação, confiança, contribuição, convivialidade e congratulação. O universo “Co” contemplaria uma gama muito variada de bens e serviços comuns e partilhados: os consumos colaborativos de recursos ociosos (sharing idle resources), a produção social pelos pares (peer to peer production), os serviços partilhados pelas comunidades de utilizadores ( sharing economy), o financiamento participativo (crowdfunding), os espaços comuns de criação criativa (coworking e makerspaces), a aprendizagem e a formação colaborativas (opensourcing), as moedas criativas e complementares (local currencies e creative money), entre muitos outros empreendimentos da chamada economia colaborativa. Bastaria para tal a existência e promoção de infraestruturas de banda larga ou autoestradas da informação, uma cultura digital disseminada feita de start-ups e plataformas tecnológicas, redes sociais e sistemas de comunicação interativos, programação e software opensource e modelos de negócio abertos.

Tudo isto, ou seja, uma extensa área da economia de bens comuns partilhados é, por enquanto, uma miragem, pois o capitalismo popular e cognitivo da sociedade do conhecimento está muito longe de ter atingido a sua velocidade de cruzeiro. O que temos neste momento é o gigantismo dos grandes conglomerados tecnológicos GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon) e NATU (Netflix, Airbnb, Tesla, Uber) e a corrida desenfreada de pequenas empresas start-up que buscam afanosamente chegar o mais rapidamente à condição de unicórnios (uma valorização de mil milhões de dólares) para serem vendidas e fazerem fortuna. O logro é ainda mais evidente se pensarmos na lógica de funcionamento dos “mercados biface” (uso abusivo dos nossos dados pessoais) protagonizados por aqueles conglomerados e nos condicionamentos que a sociedade algorítmica do Big Data impõe quotidianamente sobre os nossos comportamentos.

A emergência de um 4º setor de bens comuns partilhados

Seja como for, é já hoje visível a desestruturação imposta pelo paradigma dos “Quatro D” sobre os mercados de trabalho e emprego tal como os conhecemos ainda hoje. Em particular, a desintermediação comercial e institucional, isto é, em sentido largo, o setor terciário (o 3º setor), passará por um profundo emagrecimento e muitas das suas atividades mais convencionais transitarão diretamente para os clientes/utilizadores através de operações e procedimentos colaborativos e cooperativos de partilha. O mesmo se diga do grande setor da solidariedade social que poderá ser “adjudicado” por ONG com estatutos diversos, do setor do ambiente e da economia circular e, também, o setor da cooperação e desenvolvimento com países terceiros. A estes setores teremos, ainda, de juntar duas grandes áreas com marca cosmopolita muito impressiva, a saber, a educação e investigação cientifica e tecnológica e todo o setor criativo e cultural, já para não falar do trabalho de voluntariado que geralmente acompanha muitas destas atividades. A este imenso conjunto de setores em trânsito paradigmático damos aqui a designação de “4º setor”.

No fim de contas, e num plano mais substantivo, as sociedades do século XXI têm de decidir sobre a dosagem que ambicionam de Estado Social, e já agora de Estado Ambiental, (mais dívida, mais imposto e mais emprego público) e de sociedade e economia colaborativa e partilhada (menos dívida, menos imposto, mais emprego privado, colaborativo e partilhado). Com grande habilidade, a economia convencional socializou os prejuízos e privatizou os benefícios. Há, porém, muito espaço para o crescimento dos bens comuns colaborativos em vez dos já famosos “efeitos externos negativos” que o Estado socializa por via do contribuinte.

De forma caótica ou estruturada, estou convencido de que o 4º setor crescerá imparavelmente. Numa primeira fase em “estado de emergência”, nas margens do sistema instituído, sob a forma mitigada de “responsabilidade social e ambiental”, num segundo momento de forma mais organizada à medida que os nativos digitais e os empreendedores tecnológicos assumirem o controlo da situação nas suas próprias mãos, com muito menos economia de estado e muito mais economia partilhada em inúmeras aplicações. No fundo, estamos a construir uma “economia de fusão e aprendizagem” em novas bases. Como todas estas mudanças substanciais estarão sustentadas direta ou indiretamente em sistemas de informação e comunicação, a comunidade nómada dos colaboradores digitais estará sempre presente e será o ator principal desta grande mudança de paradigma.

A comunidade gig, o nomadismo digital e a topoligamia

Como dissemos, uma das bases fundamentais do 4º setor, a sua vanguarda, digamos assim, será a comunidade nómada dos colaboradores digitais. Esta comunidade nómada e cosmopolita, a comunidade gig, é um produto direto do paradigma dos “Quatro D” e a sua principal característica é o nomadismo digital e a presença regular em vários territórios, materialmente e virtualmente falando. Eles “casam” com vários territórios (topoligamia).

Ao contrário das grandes transições civilizacionais anteriores, a transição para o mundo dos screenagers desmaterializa e elimina, em boa medida, as referências espácio-temporais anteriores. Numa mutação onde as plataformas tecnológicas desempenham o papel principal estamos a assistir à transição paradigmática da sociedade dos objetos e das mercadorias para a sociedade dos ícones, dos signos, sinais e símbolos, isto é, a uma transição para a (i)conomia dos serviços imateriais. Na comunidade nómada dos gig vamos encontrar uma variedade muito grande de “espécies participantes”: estudantes Erasmus, bolseiros de investigação e doutoramento, imigrantes económicos, membros de plataformas tecnológicas, homens de negócios e artistas, espetadores e agentes de grandes eventos, membros de espaços de coworking e de tiers-lieux, freelancers de todos os tipos, voluntários em campos de férias e trabalho, etc.

Na retaguarda deste movimento de longo alcance as tendências pesadas já se fazem sentir. O Estado Social, por razões de sustentabilidade financeira, reduzirá cada vez mais o emprego público, substituindo funcionários públicos por prestadores de serviços em outsourcing. A economia social e solidária, devido a uma forte contração nos subsídios públicos, reduzirá o emprego social e muitas das suas funções serão externalizadas para as comunidades locais da “Sociedade Co”. A economia privada, devido à automatização e à concorrência dos mercados globais, reduzirá o emprego convencional e externalizará muitas tarefas que passarão a ser oferecidas pela economia on-demand para onde se transferirão muitos trabalhadores em regime de freelance. Por sua vez, o movimento start-up irá incubar inúmeros projetos empresariais e muitos ficarão em compasso de espera à espera de uma segunda oportunidade.

Neste contexto de economia de fusão e aprendizagem, a “Sociedade CO”, em sentido amplo, será, numa primeira fase, uma espécie de “estaleiro de cuidados intensivos”, uma enorme placa giratória por onde circularão os “deserdados da sorte”, os aventureiros, os que estão em compasso de espera e, também, uma boa parte deste nomadismo cosmopolita em “experienciação permanente”. Para atender a muitas destas situações novas, na “Sociedade Co” circularão, muito provavelmente, para além da moeda oficial, várias moedas locais e criativas.

Os mercados de trabalho no 4º setor

A grande inovação no 4º setor é o acréscimo substancial de eficácia e eficiência que é introduzido pelos promotores da transformação digital nas áreas habitualmente institucionalizadas e burocratizadas. A desintermediação promovida pelo empreendedorismo social e a economia da partilha devolve a responsabilidade social aos cidadãos, logo, podemos promover a “desindustrialização social” e reduzir substancialmente as burocracias sociais que vêm do século passado. Dito de outro modo, a inovação e o empreendedorismo sociais, com uma forte base tecnológica, estarão em condições de se substituir, em muitos casos, às instituições e burocracias do Estado Social com ganhos de eficácia e eficiência muito apreciáveis. Por outro lado, ao passarmos do emprego para a empregabilidade e do trabalho para a prestação de serviços, estamos, verdadeiramente, a revolucionar o mercado do emprego e do trabalho.

Como facilmente se comprova, estaremos num futuro não muito longínquo, devido à quebra estrutural do emprego, condenados a uma sociedade de regimes laborais muito diversos, uns em part-time, outros em regime de freelance, outros ainda em regime contributivo e colaborativo, sob muitos formatos, condições e reputações, se quisermos, uma sociedade onde o individuo “se produz a si próprio”. No final, não surpreenderia que este cidadão da “Sociedade CO”, adepto dos bens comuns colaborativos, acumulasse rendimentos, monetarizados e não-monetarizados, com diversas proveniências, a saber: um emprego em part-time num serviço público e/ou empresa privada, uma prestação de serviço em regime de freelance numa empresa on-demand, algumas horas num banco do tempo local em troca de um voucher e, finalmente, uma “inscrição” numa startup colaborativa de uma parte dos seus recursos ociosos (idle resources) em troca de uma receita eventual.

O 4º setor como campo de ensaio de uma nova estrutura socio-laboral

A inovação tecnológica, social e empresarial no 4º setor permitirá que as diferentes comunidades de utilizadores e fornecedores organizem novos formatos de prestação de serviços com suporte em plataformas tecnológicas cujas aplicações informáticas serão instaladas nos telefones móveis dos jovens e menos jovens que desejam entrar no “mercado de trabalho”. Algumas aplicações indicarão, mesmo, “perfis ocupacionais” com passagens por várias atividades e contagens de “tempo de serviço” respetivo. Nesses perfis ocupacionais, o trabalho a tempo parcial estará associado, provavelmente, a uma formação profissional, a um banco do tempo de voluntariado, a uma prestação de serviço em regime freelancer e outras atividades úteis à comunidade como, por exemplo, a agricultura social e comunitária. Quer dizer, o 4º setor é, essencialmente, um “campo de cultura” onde se cultivam perfis profissionais com o objetivo de aumentar a empregabilidade e não deixar ninguém descalço enquanto procura uma ocupação que seja do seu agrado. Obviamente, estes perfis ocupacionais tornarão absolutamente imprescindível a complementaridade de rendimentos, monetarizados e não monetarizados.

Nota Final

Se formos capazes de entender e praticar esta “inovação estrutural no 4º setor”, estaremos perante uma verdadeira revolução nos mercados e políticas de emprego e trabalho.

  • Em primeiro lugar, a atual bipolarização do mundo do trabalho poderá ser desbloqueada,
  • Em segundo lugar, os macjobs e o trabalho intermitente serão bem-vindos,
  • Em terceiro lugar, as instituições de ensino profissional, técnico e superior, praticando uma política de portas abertas facilitam o melhor regime de empregabilidade e formação,
  • Em quarto lugar, estes perfis ocupacionais, uma vez validados pelas autoridades públicas no âmbito de um regime de flexissegurança, garantem um direito fundamental de proteção social para lá da mera condição laboral em cada momento,
  • Em quinto lugar, a revisão do direito fiscal promove e facilita o melhor regime de pluriatividade e plurirrendimento no quadro do trabalho intermitente e do trabalho independente.

Finalmente, a todos estes tópicos, iremos acrescentar, porventura, a discussão pública em redor do conceito de rendimento mínimo de existência, a reforma do Estado Social e do “modelo industrial” de prestação de serviços do Estado-administração e, ainda, uma reflexão apurada sobre a extensa gama de bens e serviços comuns que podem ser acrescentados pela sociedade colaborativa e cooperativa.

Universidade do Algarve