Ao começarem a ler esta crónica não me julguem movido por algum espírito vingativo ou ressentimento, infelizmente, muito comuns na natureza humana. Trata-se, tão só, do empréstimo do título de um excelente livro de Jacob Soll.

Muito resumidamente, o argumento do professor da Universidade da Califórnia do Sul, assenta na ideia de que, sobretudo a partir do século XV (em Florença e Veneza), os contabilistas passaram a governar o mundo. Ou seja, nas grandes crises políticas, encontraremos um problema na contabilidade das grandes famílias, das grandes empresas ou dos Estados.

Por detrás de cada crise dos povos, esteve quase sempre uma crise financeira com origem na falta de rigor e fiabilidade das contas privadas ou públicas. Bem vistas as coisas, tal argumento, leva-nos concluir, com amarga ironia, que a culpa é sempre do contabilista. Em cada crise não temos mais do que um verdadeiro ajuste de contas.

Jacob Soll fala de tudo isto, traçando a frágil e umbilical relação entre a contabilidade e o sucesso económico e político dos países desde a renascença (em Itália e na Holanda) onde se aplicaram pela primeira vez as modernas técnicas contabilísticas baseadas no método das partidas dobradas (inventado por volta de 1300), até aos atuais problemas com as más auditorias e as crises financeiras que tanto afetam o quotidiano dos nossos países.

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O livro faz ainda o relato e análise história das diferentes soluções ensaiadas pelos políticos para evitar que tal voltasse a acontecer. Descreve eventos marcantes, desde a primeira crise na Holanda conhecida como bolha das túlipas no século XVII ou a que se lhe seguiu, em Ingraterra, a bolha dos mares do sul, até, mas também as figuras por detrás de cada crise contabilística, desde Cosme de Médicis ou Colbert, passando por Pombal ou Napoleão, chegando à crise das dotcoms ou à mais recente crise do subprime e das dívidas soberanas.

Para Soll, o capitalismo e os governos prosperam sem crises maciças apenas durante diferentes e até limitados períodos de tempo quando a responsabilização financeira funciona. Acrescentando ainda que as sociedades que tiveram sucesso foram, não só as que enriqueceram em contabilidade e cultura comercial, com também as que conseguiram construir um enquadramento sólido, moral e cultural, de modo a gerir o facto de os seres humanos terem geralmente o hábito de ignorar, falsificar e falhar a contabilidade.

Os contabilistas surgiram com o intuito de fazer as contas das empresas, servindo quer como instrumento de gestão de quem as dirigia, quer também para as mostrar a quem quisesse ver o que nelas se passava, nomeadamente, fornecedores, clientes e financiadores (a quem hoje chamamos stakeholders). A seguir, apareceram aqueles que podiam confirmar, certificar, essas mesmas contas: os revisores. Depois, mais recentemente, quem controlasse tais revisores: os auditores. E por fim, quem, com base em toda a informação disponível, diga onde é mais seguro investir (e de quem hoje dependemos quase para respirar): as agências de rating.

Mas a verdade é que, apesar de todo este percurso da contabilidade, com certificações e mais certificações, ainda há quem consiga esconder factos relevantes ou enganar-se ao não atribuir risco onde este é flagrante.

Quem se recorda das falências fraudulentas da Maxwel, da Enron, do IBCCI, da Swissair ou da Parmalat e, mais recentemente, dos bancos islandeses ou do Lehman Brothers e Bear Sterns. Quem se recorda do colapso da auditoria com o fim da gigante Arthur Andersen. Quem se lembra das contas forjadas na Grécia com a ajuda de grandes consultoras e bancos de investimento internacionais ou, entre nós, os recentes casos do BPN, do BPP ou do BES. Em todos eles o mesmo diagnóstico: falta de qualidade da informação contabilística ou aquilo que vulgarmente se designa como contabilidade criativa.

Lembremos a este propósito, o famoso Relatório Cadbury, apresentado no Reino Unido em 1992, versando a qualidade da Corporate Governance ou a famosa Lei Sarbanes-Oxley, aprovada em 2002 nos USA, acerca da fiabilidade das auditorias e, muito recentemente, a Directiva e o Regulamento de União Europeia, sobre a supervisão e a auditoria de contas.

Responsabilizar aqueles que fazem as contas junto dos príncipes e, hoje em dia, também junto das grandes empresas sujeitas a forte risco sistémico na nova economia fortemente globalizada. Regular e aplicar padrões, referências, normas de soft ou hard law. Criar mecanismos eficazes para controlar e aferir a fiabilidade dos números resultantes das finanças públicas ou privadas, sempre foram e continuam a ser objetivos essenciais para uma boa gestão e uma forma eficaz de evitar crises políticas.

Tal preocupação com os números não significa esquecer ou menosprezar as pessoas, as suas necessidades, emoções ou sentimentos. Mas sem boas contas, todas essas preocupações centrais ao nosso natural humanismo, poderão ficar rapidamente em causa (veja-se a situação presente do Brasil).

E quando decorre, entre nós, mais uma comissão parlamentar de inquérito a um banco resolvido. Quando toda a imprensa nos inunda com números contraditórios sobre a execução orçamental. Quando nesta semana, em que se assinala mais um aniversário do 25 de abril de 1974 e, consequentemente, do nosso retorno à democracia e à liberdade, se discute no parlamento mais um programa de estabilidade, cujas previsões estão longe de ser consensuais, este não pode ser um tema menos importante. Afinal, nestes quarenta e dois anos, as nossas crises foram sempre, também, crises contabilísticas.

Sejamos claros, sem confiança no Estado e nas suas contas, sem confiança no sistema financeiro e nos seus balanços, sem confiança na contabilidade das empresas, não haverá recuperação económica, aumento do emprego e, consequentemente, sustentabilidade dos indispensáveis apoios sociais.

Professor universitário