O leitor lembra-se quando António Costa (ajudado por um batalhão de comentadores) pressionou Cavaco Silva a antecipar eleições, com o argumento de que, em Outubro de 2015 (pouco antes das presidenciais de 2016), o Presidente da República perderia o poder de dissolução da Assembleia da República e que, como tal, estaria “diminuído”, “impotente” e “limitado nas suas competências presidenciais”? Pronto. Afinal, a Constituição impede a dissolução nos primeiros seis meses após eleições legislativas, pelo que o argumento não é válido.

Este é um exemplo, entre muitos, das asneiras que se propagam pelo debate público e que são repetidas à exaustão até se tornarem verdade. Martelam-se os factos até que encaixem. Ou até serem desmentidos – o que geralmente acontece tarde demais e já com pouca gente a ouvir.

Pergunto: o que acontece aos políticos que falam do que não sabem ou, como diz Cavaco Silva, que não fazem o trabalho de casa? São descredibilizados? Não. No geral, não lhes acontece nada. No pior dos casos, são alvo de um comentário jocoso e passageiro num debate parlamentar que, só mesmo com azar, alguém estará a seguir pelo Canal Parlamento e levará a sério. Mas, no melhor e mais comum dos casos, a sua versão errada das coisas impera sobre a realidade dos factos e é repetida por comentadores e analistas, alterando o rumo do debate a seu benefício. E, quando assim sucede (e sucede muito), o resultado só pode ser um debate construído por mitos em vez de factos.

É um caso típico em que o crime compensa. Num debate público assim, sustentado em mitos, os factos são, no limite, irrelevantes. Portanto, a pergunta que urge colocar não é tanto por que razão não estudam os assuntos, mas sim por que razão os políticos haveriam de o fazer: para quê ter o trabalho se se pode, sem prejuízo, escolher uma versão mais favorável dos factos, com melhor adequação à mensagem política que se pretende passar?

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O ponto é esse. Podemos achar que é uma questão cultural e lamentar-nos da (falta de) estatura moral e ética dos nossos políticos. Mas não dá para fugir à evidência: não há incentivos institucionais para que o debate seja rigoroso e apoiado em factos.

Os homens não são anjos, pelo que desejar que o sejam não nos levará a lado nenhum. E, para as coisas funcionarem, nem os homens precisam de ser anjos: é precisamente sobre esse pressuposto que as repúblicas liberais foram construídas e é por isso que existem instituições para enquadrar e fiscalizar a actividade política. Querem políticos melhores e bem preparados nos debates? Obriguem-nos a ser melhores. Ora, há algo aí que tem falhado.

Talvez não seja a afirmação mais segura de se fazer num jornal mas, em grande medida, parece-me que é nos meios de comunicação que se localiza o problema – porque também a eles compete escrutinar os políticos e informar os cidadãos que, por falta de tempo ou incapacidade, não podem aprofundar os seus conhecimentos acerca de todos os assuntos da sociedade. Isto porque informar não é só reportar o que foi dito. É, fundamentalmente, fazer fact-checking e prevenir que o ar se torne irrespirável. Ora, seja porque se perseguem polémicas (que vendem mais), porque optam por servir como caixa-de-ressonância de comunicados ou porque as redacções não têm recursos suficientes para esse tipo de análise, isso não tem sucedido. Ou, pelo menos, não tem sucedido em tempo útil.

Digo isto com o à-vontade de quem diagnostica um problema que não sabe se é (mas gostava que fosse) resolúvel. Reconheço que não vejo que a situação esteja pior do que estava há uns anos – sobretudo naqueles tempos em que só se viam virtudes no caminho ruinoso do PS de Sócrates. Acho, de resto, que as dores causadas pela crise fizeram com que todos nos importássemos mais com o que fazem e dizem os políticos, o que melhorou em muito o seu escrutínio. Mas agora, sem troika e à beira de entrar em ano eleitoral (com tudo o que isso poderá significar em volume de demagogias), seria muito bom que o escrutínio funcionasse e os mitos ficassem, tanto quanto possível, à margem dos factos. Ganhávamos todos.