Os tesouros dos outros são sempre o nosso lixo; e os nossos dejectos têm um certo encanto.  É verdade que uma revista ou um jornal que está a ser lido por alguém ao lado suscita entusiasmo.   Mas mal conseguimos chegar à sua posse o entusiasmo desvanece-se como algodão doce:  o título que prometia tanta informação limita-se a confirmar aquilo que já sabíamos;  a fotografia que nunca tínhamos visto era apenas uma fotografia que não estavamos a ver bem.

A afeição que temos por nós inclui os nossos próprios dejectos.   Duas peças de roupa suja absolutamente idênticas são tratadas de maneiras muito diferentes se soubermos que uma dela era nossa.   A nossa sujidade será suja, mas é a nossa sujidade; e o nosso cheiro é nosso.   Se é a proximidade connosco que nos move à indulgência para connosco, então a conclusão só pode ser a de que somos fundamentalmente diferentes das outras pessoas.

Isto explica que aquilo a que os outros prestam atenção, e sobretudo aquilo que os outros guardaram, raras vezes tenha interesse para nós.    Tal não impede bem entendido que muitas vezes os outros tenham grande interesse para nós, e pelas mais variadas razões.   O nosso interesse, no entanto, ou exclui como excentricidade aquilo que eles acumularam, ou faz do que eles acumularam uma corroboração daquilo que já sabíamos sobre eles.   Os tesouros dos outros não nos surpreendem, e raras vezes nos afectam.

No espólio de uma pessoa que morreu não nos incomoda aquilo que achamos que qualquer pessoa deve guardar: as últimas vontades, as fotografias, os extractos do banco ou, em caso de inclinação, os poemas.  Mas essa parte do espólio vêmo-la simplesmente como extensão da pessoa que tinha morrido.   Incomoda-nos pelo contrário aquilo que nós nunca guardaríamos:  os parafusos, as agendas vazias, os bocados de madeira que imaginamos agora que o morto tivesse a intenção de ter colado a outros bocados de madeira que não imaginamos onde possam estar.   A essas coisas chamamos lixo e, quando depende de nós, deitamo-las fora.  Mas antes de as deitar fora perguntamos com rancor e perplexidade que espécie de pessoa as iria guardar.

Ao ver certo lixo de alguém podemos duvidar que se trate de uma pessoa.   A diferença entre os tesouros da mulher que vive rodeada de sacos de plástico até ao tecto e os nossos próprios tesouros é para nós uma diferença quase biológica, como entre um tiranossauro e uma pomba, ou entre um literato e uma porteira.   Em nossa opinião somos quase sempre literatos rodeados por tiranossauros; e raramente porteiras num mar de pombas.   Os nossos tesouros têm para nós um grande encanto; imaginamos que possam vir a intrigar e até a fascinar quem venha depois remexer nas nossas gavetas.   Os dos outros no melhor dos casos suscitam indiferença; e nos demais casos desconfiança e até repulsa.

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