Os bilhetes nunca chegam. É tradição ficar sempre alguém em casa, sentado no sofá, com o comando na mão e os olhos postos na televisão. Alcides é um deles. Tem 87 anos, mas nem a crescida idade lhe tira a tristeza de, hoje, às 21h, não ser uma entre as mais de 60 mil pessoas que vão estar no Itaquerão. “Está muito desorganizado. Não tenho credencial nem bilhete para o jogo de amanhã [hoje]”, queixou-se, entristecido por não poder assistir ao vivo ao Brasil-Croácia que abre o Mundial.

Afinal, em 2006, esteva em Munique quando um golo de Lahm arrancou o Mundial da Alemanha. Na África do Sul, quatro anos mais tarde, lá estava ele de novo, quando uma bomba de Tshabalala meteu um país a gritar golo. “Aí nunca tive problemas. É a primeira vez que isto acontece”, garantiu o senhor Alcides, nascido em Montevideu, em 1927. Logo ele, que não sabe viver sem futebol. E, por supuesto, os Campeonatos do Mundo são o pináculo da sua paixão. A razão até se entende.

O Uruguai conta com dois Mundiais no seu currículo. O senhor Alcides não se lembra do primeiro (1930), culpa dos apenas três anos que contava de vida. O segundo, bom, o segundo viveu-o dentro de campo. E aqui introduzimos o seu apelido – Ghiggia, Alcides Chiggia. Experimente sussurrar estas duas palavras e quase sentirá um país inteiro a tremer. Basta escrevermos que, na maior tragédia do futebol canarinho, no maior desgosto de amor dos brasileiros, o senhor Alcides transforma-se em Ghiggia – o homem que calou o Maracanã. O uruguaio que originou o Maracanazo e criou o único fantasma que atormenta milhões de pesadelos brasileiros.

A ESTREIA DO BRASIL EM MODO ANFITRIÃO

Estamos a exagerar? Nós não. Os brasileiros, talvez sim. A história remonta a 1950. O Brasil ainda era um órfão e ainda estava sem nenhum dos cinco Mundiais que hoje tem. Os canarinhos ainda não eram uma referência do futebol mundial. Há 64 anos tiveram a oportunidade de se agarrar ao primeiro título. E logo em casa – o Brasil organizava o seu primeiro Campeonato do Mundo. O Uruguai, pelo contrário, já tinha a barriga meio cheia. Vencera o Mundial de 1930, o primeiro da história, antes do bis (1934 e 1938) da Itália de Vittorio Pozzo.

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O escrete, então treinado por Flávio Costa, calhou então no Grupo 1, com Jugoslávia, Suíça e México. A estreia foi precisamente contra os centro-americanos, em pleno Maracanã. Ademir (2), Jair e Baltazar trataram de despachar os mexicanos com um 4-0. A segunda partida, no Pacaembu (São Paulo), seria uma desilusão. A Suíça forçaria os canarinhos a um empate: 2-2 (Alfredo, Baltazar; Fatton-2). A Jugoslávia seguia imparável, depois das vitórias convincentes com a Suíça (3-0) e México (4-1). Ou seja, o Brasil-Jugoslávia seria o jogo do tudo ou nada. Aos jugoslavos bastava um empate para seguir em frente. Ademir marcou logo aos quatro minutos e Zizinho fecharia a contagem aos 69′. Missão cumprida.

Quatro grupos, quatro apurados para o lote final, o que apuraria o campeão mundial. O fantastic four contava com Brasil, Uruguai, Suécia e Espanha. Na jornada inaugural, enquanto a Espanha empata (literalmente) o Uruguai — acabaria 2-2 –, o Brasil esmaga a Suécia com um festival memorável de Ademir, que marcou quatro golos. Chico bisaria e Maneca molharia também a sopa. Resultado? 7-1. Já ninguém tinha duvidas: o destino do Brasil era o trono mundial.

Seguia-se a Espanha. Hola, qué tal? Cuantos quieres? Bueno, a turma do samba voltaria a fazer das suas. 6-1 e uma certeza: os brasileiros não deixariam fugir o Campeonato do Mundo. O Uruguai, como vimos, já havia empatado com a Espanha (2-2) e quase voltou a tropeçar contra a Suécia. Aos 76′, os suecos estavam na frente e os brasileiros já piscavam o olho ao sonho. No entanto, um bis de Óscar Míguez ofereceria a vitória aos uruguaios e deixava-os bem “vizinhos da silva” para discutir o primeiro lugar do grupo, na última jornada, contra o Brasil. O Mundial ainda se decidia com um grupo, mas o derradeiro jogo era como se de uma final se tratasse.

O FANTASMA QUE FICOU

Foi mesmo. O Rio de Janeiro que o diga. A cidade mergulhou num turbilhão de pessoas, gritos e expetativas. O Brasil estava prestes a ser campeão do mundo, julgava o povo. A crença era tanta que perto de 200 mil pessoas encheram o Maracanã, estádio inaugurado em junho que, um mês depois, já acolhia o encontro mais importante da história do futebol brasileiro.

E os da casa quiseram despachar a coisa bem cedo. Na primeira parte, recorda o site da FIFA, construíram 17 oportunidades de golo contra apenas seis vindas do lado uruguaio. Até ao intervalo, nada. Mas aos 47 minutos, um golo de Friaça cortava as amarras e o estádio explodia. Fazia-se a festa: o Brasil dava o último passo para ser campeão do mundo.

O problema é que o Uruguai deu dois. Schiaffino, aos 66, calou o Maracanã e, a 11 minutos do fim, o tal Alcides Ghiggia impediu que os milhares de brasileiros voltassem a gritar naquele dia. “Só três pessoas conseguiram silenciar 200 mil pessoas no Maracanã com um único gesto: o Frank Sinatra, o Papa João Paulo II, e eu”, diria o uruguaio, mais tarde, ao recordar o dia que o tornou num fantasma aos olhos de qualquer brasileiro. “Nunca vi pessoas tão tristes como os brasileiros que vi após o jogo”, assegurou. Além de passarem a ver Ghiggia como um fantasma, os canarinhos batizariam o dia como Maracanaço.

A Puma, a marca que veste a seleção uruguaia, criou um anúncio onde um fantasma vestido de azul celeste invade a terra do samba e desata a assustar as pessoas. É hilariante. O filme acaba com o fantasma no Maracanã e culmina com a frase “o fantasma de 50 já está no Brasil.”

Sessenta e quatro anos depois, o Mundial regressa ao Brasil. O Uruguai também. Só o senhor Alcides é que não. “Isto deve ter acontecido devido a um empregado da FIFA que não sabe o que está a fazer”, suspeitou Ghiggia, quando a Rádio Continental argentina lhe questionou por que iria “ver o jogo através da televisão”.