Não estava à espera. Afinal, há eles e os “normais”. Os que voam a média altitude e não passam disso, e os que chegam a tocar nas nuvens. “São pessoas que jogaram onde sabemos e que têm o seu espaço no futebol”, resume, com a voz contente, a mesma que usa para falar, “em português”, com Robert Pirès. Todos os dias. “Está connosco como se estivesse com os jogadores do Arsenal e isso é uma coisa que te dá orgulho”, garante Edgar Marcelino, português, 30 anos e um dos estrangeiros que, como um íman, foi atraído para a Índia.

Aterrou há três semanas em Goa, no traço mais português do país. Foi sozinho, sem família. Só para jogar futebol. É o que fará, de três em três dias, a partir deste domingo — a Indian Super League (ISL) já arrancou. Fê-lo com um 3-0, onde viu o Atlético de Kolkata vencer o Mumbai City FC. Agora serão dez semanas de bola a rolar, na primeira edição de um campeonato com uma dezena de equipas, montado — à semelhança da Major League Soccer, nos EUA, ou da Australian League, na Austrália, para reclamar um pouco da atenção que o país dedica, em massa, a outros desportos. Neste caso, o críquete. “São quase três meses. Eles querem ver se isto terá um impacto forte. Se assim for, acredito que deem continuação a isto”, revela Edgar, ao telefone com o Observador.

As regras são simples. Mas há diferenças. Cada equipa é obrigada a ter estrangeiros. Por jogo, em campo, podem estar no máximo seis e só é permitido trocarem entre si. Nada de misturas. “É uma forma de protegerem o jogador indiano. Para nós é pior, claro, mas de outra forma viriam para cá centenas de estrangeiros e eles não jogariam”, resume o português, já ciente do que é andar pela Ásia: na época passada jogou pelo Seeb Club, no Omã.

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Depois, há uma estrela em todos os clubes, um nome que toda a gente conheça. Alessandro Del Piero, lenda viva da Juventus e passou os últimos anos na Austrália, está no Delhi Dinamos, clube da capital; David Trezeguet, francês goleador e vencedor do Mundial 1998 e Euro 2000, chegou ao FC Pune City; e Marco Materazzi, o gigante italiano que chorou com Mourinho e levou uma cabeçada de Zidane, é treinador-jogador no Chennai FC. São três dos vários nomes que a ISL tem usado para divulgar a prova pelo país e no mundo. E há mais, como Freddie Ljungberg, sueco, de 37 anos, que deu nas vistas no Arsenal, entre 1998 e 2007, ou Elano, brasileiro que há quatro anos jogava contra Portugal no Mundial da África do Sul.

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Após estar seis épocas no Chipre, uma em Marrocos e outra em Omã, Edgar Marcelino foi experimentar a Índia.

No FC Goa, o escolhido foi Robert Pirès. O francês, gadelhudo, que aos 40 anos decidiu voltar a jogar à bola — retirara-se em 2011, no Aston Villa de Inglaterra. “Não se nota nada. Está mais ‘seco’ que muitos jogadores de 25 anos. É muito humilde e amigo do seu amigo. Surpreendeu-me muito”, confessou Edgar, um extremo, tal como Pirès, com quem partilha “a forma de jogar”, as “tabelinhas” e o gosto pelo “toca e vai”. E, agora, também uma “relação muito próxima”, graças ao português que trocam nas conversas: Pirès é filho de um português emigrante em Paris, e chegou a ter a vida difícil na escola, em criança, por não dominar o francês.

A eles se junta Zico, o brasileiro que treina o FC Goa e, na década de 80, liderou com os pés o Flamengo e a seleção canarinho. “Está sempre bem-disposto, é muito porreiro. Nos exercícios de finalização é ele que nos passa a bola e vês que aquela perna era de jogador”, desvenda Edgar Marcelino, o mesmo que reagiu “de pé atrás” quando aos ouvidos lhe chegou a hipótese de ir jogar para a Índia e ser um dos precursores de uma nova competição.

Jogar e decidir em dezembro

Ao contrário de Miguel Garcia, que só pensou em ir para a frente. “Interessei-me logo. Sou uma pessoa que gosta muito de conhecer outros países, culturas e outro tipo de futebol. Fiquei entusiasmado”, contou o lateral direito, hoje com 31 anos, muitos passados no Sporting e no Braga, antes de passar pelo Orduspor, na Turquia e, na temporada passada, pelo Maiorca.

Foi quando lá estava que o telefone tocou e do outro lado estava um agente indiano, “que trabalhava em Espanha”. Apresentou-lhe a proposta, falou-lhe do projeto, soltou alguns nomes que para lá iriam jogar e pronto. Miguel disse que sim e chegou Gauhati no final de agosto.

Ele e Joan Capdevilla, a estrela que lhe calhou no Northeast United FC. “É diferente do que estamos habituados: a um campeonato de dez meses, jogado de semana a semana. Aqui só jogamos e viajamos, praticamente não treinamos”, explica o homem que, em 2005, marcou em Alkmaar o golo que atirou o Sporting para a final da Taça UEFA. “Aqui haverá jogos de três em três dias”, confirmou Edgar Marcelino, ao referir que, tanto ele como para Miguel, vão “estar com muitos jogos nas pernas” e “bem fisicamente” em dezembro, quando a aventura terminar.

Além de Edgar Marcelino e Miguel Garcia, também Miguel Herlein, Bruno Pinheiro (ambos no FC Goa), André Pereira (Mumbai City) e Henrique Dias (Delhi Dinamos) estão na Indian Super League.

Aí haverá escolhas a fazer. E quiçá oportunidades para serem aproveitadas — o fim da Indian Super League coincidirá com a abertura do mercado de transferências de inverno, na Europa. “Aí estaremos com ritmo e jogos nas pernas, o que é bom”, confirma Miguel Garcia, que tem a hipótese de, finda a ISL, continuar na Índia até maio, a jogar nas provas regulares de futebol do país. Já Edgar Marcelino tem contrato até “ao último dia do campeonato” e o plano é “sair para outro clube” quando a prova se despedir.

É “spicy, spicy, spicy

Até lá ambos terão já se tiveram de habituar a tudo. A começar pelos indianos que com eles estão no relvado. E ali há talento, mas pouco trabalho feito em casa, dizem. “Há muitos que têm técnica e são rápidos, mas não têm escola. São muito fraquinhos taticamente”, lamenta Edgar, sem acreditar que, entre 1,2 mil milhões de pessoas, no meio de “tanto milhão”, como chama, “não existam miúdos com o talento como vemos em Portugal”.

Miguel ficou com a mesma ideia. “Vê-se que lhes falta uma base, que não têm formação”, explica, já lhe tendo chegado aos ouvidos casos de miúdos “que só começam a jogar aos 14 anos”. Nota-se, diz, que “falta qualidade”. Ou que “precisam de estar com melhores jogadores” para evoluírem, sugere Edgar. Daí os estrangeiros? Sim, confirma o homem que também já esteve na Holanda, Chipre e Marrocos. De resto, as diferenças são muitas.

A começar pela comida. Picante, como se sabe. Ou “spicy, spicy, spicy”, como a descreveu Edgar Marcelino, que achava estar condenado a “perder uns quilos”. Mas não. “Estamos num hotel e podemos comer o que queremos. Falámos [os estrangeiros] com os responsáveis do FC Goa e deixaram-nos escolher o que queremos da cozinha”, sublinha. Problema que Miguel Garcia não teve, por já antes estar habituado a “comida indiana, nepalesa e paquistanesa”. Depois há “os ritmos de vida distintos” e as “cidades mais pobres”, mas, garante o lateral, “em contrapartida as pessoas são muito simples e acolhedoras”.

Mas não é fácil. Primeiro, pela distância. Segundo, pelo tempo que, como no campo, é passado a correr. “Vim sozinho para cá. Há jogos de três em três dias, é praticamente impossível teres tempo para estar com quem quer que seja”, lamenta Edgar Marcelino, ao lembrar que, na Índia, jogar fora de casa dá direito a “viagens de duas ou três horas” de avião. “É como estar em Portugal e ir jogar à Alemanha”, compara. Tanto um como outro já notam o interesse dos indianos a crescer pelo futebol, desde os milhares que se esperam nos estádios ou as centenas que já vão assistir aos treinos. Agora, é esperar dez semanas e ver se pega.