Ao fim de 14 anos, Jon Stewart abandonou o “Daily Show”. Hoje, dia 28, estreia-se o seu sucessor: não é a melhor altura para alguém ficar com o lugar, pois não?
Não foram 14 anos — foram 16. E de facto não é a melhor altura: tendo em conta que ele decidiu deixar o programa num momento em que era idolatrado, é quase impossível alguém sair-se bem da comparação com Jon Stewart

Mas, pelo menos, o humorista sul-africano Trevor Noah pode ter a confiança de saber que foi a primeiríssima escolha para o lugar, não é?
Não, não é. Antes dele, os responsáveis pelo “Daily Show” convidaram Chris Rock, Amy Poehler, Louis C.K. e Amy Schumer. Sendo que esta é apenas a lista daqueles que se conhecem — ninguém nos garante que eles não tenham esgotado as Páginas Amarelas de Nova Iorque antes de arranjarem o telefone de Trevor Noah.

Certo, talvez isso não faça crescer a autoestima de uma pessoa. De qualquer forma, de certeza que Jon Stewart está a dar uma ajuda ao seu sucessor.
Sim. Quer dizer: não. Numa entrevista ao The New York Times, Trevor Noah descreveu as coisas da seguinte forma: “As sugestões do Jon foram muito simples e, ao mesmo tempo, muito difíceis de decifrar. Ele é uma espécie de Yoda judaico. Disse-me: ‘Faz o melhor programa que achares que precisa de ser feito. E confia no teu desconforto'”.

Como é que Trevor Noah soube que ia ter um dos empregos mais desejados da televisão americana?
Ele estava no Dubai (já vamos explicar porque é que este detalhe é importante), a conduzir, quando o telefone tocou. Do outro lado, o agente dele perguntou-lhe: “Gostavas de ser o novo apresentador do ‘Daily Show’?”. Trevor saiu do carro com as pernas a tremer e foi nessa altura que a sua localização geográfica se transformou num obstáculo. Quando foi entrevistado por Jerry Seinfeld, no programa “Comedians in Cars Getting Coffee”, explicou: “O pior de tudo é que eu estava no Dubai, que é um dos países onde é mais difícil conseguir uma bebida alcoólica”.

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Já percebi que Trevor Noah está habituado a que as oportunidades lhe caiam do céu…
Nada disso. Na conversa com Seinfeld, ele explicou que a razão pela qual se farta de trabalhar é porque sabe o que é ser pobre. Trevor nasceu na África do Sul durante o apartheid: a mãe era negra e o pai branco, de nacionalidade suíça e alemã. Isso queria dizer que o simples facto de ele ter nascido era considerado um crime, uma vez que as relações interraciais eram punidas por lei. Trevor vivia no Soweto com a mãe e, quando iam visitar o pai a Joanesburgo, ela levava uma farda num saco: para poderem estar os três juntos sem chamar a atenção da polícia, deveria fingir que era a empregada.

E o resto da família?
Ele também se dava muito com o avô materno. Um dia, estavam os dois na rua a participar numa manifestação quando um polícia a cavalo tentou fazer com que dispersassem. Pouco antes, tinha aparecido nos jornais uma fotografia do presidente sul-africano a dar um beijo a um cavalo que vencera uma corrida importante. Por causa disso, o avô decidiu perguntar ao polícia: “Porque é que o seu presidente beija um cavalo mas não beija a minha irmã?”. O polícia respondeu: “Não sei…”. E o avô: “Isso é porque ainda não viu a minha irmã…”. Trevor Noah nunca mais esqueceu esse momento por uma razão simples: foi a primeira vez que viu um branco e um negro a rirem juntos.

Foi por causa disso que ele decidiu tornar-se um humorista?
Não, tudo aconteceu por uma razão muito mais simples. Uma noite, foi a um clube de comédia com uns amigos e um deles estava tão bêbado que não se calou enquanto não o forçou a subir ao palco para contar umas piadas.

A partir daí é que a vida dele passou a ser só facilidades?
Longe disso. Quando fazia espectáculos de stand up, Trevor levantava-se às seis da tarde e estava no palco entre as 19h e as 20h30. Depois, tomava aquilo a que chamava “o pequeno-almoço”. A seguir, actuava noutros clubes da cidade até às 3h30. No regresso a casa, fazia compras numa loja que estivesse aberta toda a madrugada e deitava-se às onze da manhã.

Uma infância difícil e uma vida de muito trabalho — ele deve ser admirado por toda a gente.
Nem toda. Alguns comediantes sul-africanos acham-no arrogante. E vários americanos ficaram chocados quando, depois de se saber que ele iria suceder a Jon Stewart, foram revelados tweets antigos em que fazia piadas consideradas inconvenientes sobre mulheres gordas e sobre Israel. Mas, entretanto, a polémica desapareceu.

E que piadas é que ele vai dizer hoje, no programa de estreia?
Isso não se sabe. Mas sabe-se que vai entrevistar o actor e comediante Kevin Hart. Nos dias seguintes, recebe Whitney Wolfe, co-fundadora do Tinder; Chris Christie, candidato republicano à Presidência; e o cantor Ryan Adams.

Parece-me óptimo: quando é que vamos poder ver isso em Portugal?
Vai ter que ter paciência. A SIC Notícias e a SIC Radical, que têm emitido o Daily Show, não compraram a nova temporada.