A Festa do Avante! é, para o PCP, uma excelente oportunidade para juntar umas centenas de milhares de “camaradas e amigos” para convívio, diversão, petiscos e… ideologia. A casa comunista, neste caso, é a Quinta da Atalaia, na Amora. Nada má, por sinal: umas quantas dezenas de hectares, vista privilegiada sobre a baía do Seixal, espaço mais do que suficiente para comer ao ar livre e para arriscar um pé de dança. Mas também para falar sobre política. Não à volta de umas febras grelhadas, mas em debates organizados onde participam alguns dos mais destacados dirigentes comunistas. Foi isso que aconteceu durante todo o dia de sábado, o segundo da Festa do Avante!. Discutiu-se o neoimperialismo dos Estados Unidos com os “camaradas” colombianos, iranianos e russos e falou-se sobre o novo quadro político, sobre a banca nacional e sobre a falência do projeto europeu. Tudo em perfeita sintonia. Ou quase tudo. Como em qualquer festa, há sempre aquele convidado capaz de uma tirada inconveniente que faz gelar os restantes.

O debate gerava muita expectativa e a tenda construída para o efeito, bem no centro do recinto, estava bem composta. João Oliveira, Jorge Cordeiro e Pedro Guerreiro discutiam a “nova fase da vida política nacional e a luta pela alternativa patriótica e de esquerda”, num debate moderado por Margarida Botelho. Os três dirigentes comunistas aproveitaram para fazer o raio-x aos primeiros dez meses de “geringonça”: sim, o acordo com os socialistas permitiu afastar a direita do poder e iniciar o processo de recuperação de rendimentos e direitos sociais. Mas eram inegáveis as “insuficiências” da “geringonça” e as “contradições” do Governo socialista. Seria Jorge Cordeiro, de resto, a resumir a posição do PCP:

Este não é um Governo de esquerda, esta maioria não é uma maioria de esquerda e o PCP continua independente em relação ao Governo socialista”, assumiu o membro do comité central comunista.

A explicação, no entanto, não convenceu todos os presentes.Estamos sempre a afirmar que a atual solução é insuficiente, mas não damos o passo em frente. Arriscamo-nos a cair numa situação de movimento pelo movimento, luta pela luta. Estamos a lutar por umas migalhinhas e não damos o passo em frente. Se nada for feito o regime opressor capitalista vai manter-se”, queixou-se um militante comunista que decidiu intervir no debate. “É uma situação nova e uma situação nova exige mais luta, mais organização, mais debate. O partido tem de trabalhar mais e melhor junto das bases, junto dos camaradas”, pediu outro. E era preciso ter um olho no PS.

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Eu não confio no PS. Não é um companheiro leal. É adúltero”.

Os dirigentes comunistas registaram as observações, mas não acusaram o toque. “Um dos piores erros que podemos cometer é minimizar os resultados da nossa própria luta“, começava por responder Pedro Guerreiro. O PCP “não abdicou das suas convicções” — nem “um milímetro”. Mas era preciso encontrar respostas para os problemas imediatos dos portugueses, acabou por lembrar o dirigente comunista.

João Oliveira ajudava a completar: “Não temos a ilusão de que todos os deputados do PS são agora deputados do PCP”, mas “hoje estamos em condições de dizer que a luta valeu a pena”. Os próximos passos são igualmente difíceis, mas necessários: “Os objetivos futuros cumprem-se com a consciência das massas”, completava Jorge Cordeiro.

Esta parece ter sido a fórmula encontrada pelo PCP para gerir as expectativas dos militantes. No Parlamento como em “casa”, os dirigentes comunistas justificam o apoio ao Governo socialista com a necessidade de impedir que a estratégia de PSD e CDS continuasse por mais quatro anos, enaltecem as conquistas conseguidas nos primeiros dez meses de “geringonça”, mas reconhecem que é preciso ir mais longe. Muito mais longe. A solução? Romper com o “espartilho” imposto pelo euro e pela União Europeia.

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E esse seria, de resto, outro debate em destaque no segundo dia de “Avante!”. Discutiu-se a necessidade de rejeitar “a submissão ao euro e à União Europeia”. As críticas ao “diretório europeu” foram, sem grande surpresa, muito duras.

Para Vasco Cardoso, também ele membro do comité central do PCP e um dos intervenientes nesse debate, o processo de construção da União Europeia teve, como consequência última para o país, “o domínio do grande capital e dos grandes grupos”, que assim conseguiram uma maior “concentração de riqueza”. Pelo caminho, deu-se a “liquidação efetiva do nosso aparelho produtivo” e, com ela, o aumento do “endividamento externo”. “Portugal foi um dos países que menos cresceu no mundo desde a entrada na União Europeia”, observou o comunista.

Nada que o PCP não tivesse dito desde o início, como lembrou o eurodeputado João Ferreira: “O PCP tinha e teve razão” desde o primeiro momento. Infelizmente, continuou o comunista, confirmou-se a tese de que “à dependência económica sempre sobrevém a subordinação política“.

Feito o diagnóstico, resta saber o que fazer. A resposta não é simples, reconheceram os comunistas perante os militantes. Por duas razões: primeira, o PCP não é Governo e segunda, os socialistas não têm o mesmo entendimento, notou o deputado Paulo Sá. “O PS e o seu Governo afirmam duas coisas que são inconciliáveis”. Que “é possível recuperar rendimentos”, respeitando as “regras europeias”.

O PS quer sol na eira e chuva no nabal, tentar conciliar o inconciliável. Esta contradição vai se acentuando dia após dia”, sublinhou o comunista.

O caminho, por isso, só pode ser um: “Precisamos de estudar e preparar o país para a saída da submissão do euro”, concluiu Vasco Cardoso, membro do comité central comunista. A que preço? Essa parece ser uma pergunta a que o PCP ainda não conseguiu dar uma resposta concreta. “Não sabemos as consequências desse impacto”, reconheceu Vasco Cardoso, para logo depois corrigir: “Maior desastre para o país era manter-se amarrado a uma moeda que é contrária aos interesses do país”.

Os militantes presentes acenavam em concordância. Ao contrário do debate sobre a nova solução de esquerda, o inimigo desta vez era comum e estava bem identificado. Seria Ângelo Alves a dar a estocada final em jeito de aviso: “Eles não vão desistir e estão a usar todos os meios para apertar o colete de forças”. É preciso resistir e “abrir outros caminhos”. Por outros palavras, o país só conseguirá recuperar a soberania política escancarando as portas do euro, insistiram os responsáveis comunistas.

Horas antes, naquele mesmo espaço, já as instituições europeias tinham sido alvo das críticas de Jorge Pires, Miguel Tiago e Armando Miranda, que tentaram explicar como o controlo público da banca é uma condição indispensável para recuperar a soberania e contrariar o “processo de concentração bancária em curso”, como lhe chamou Jorge Pires. Um processo que, denunciou o comunista, ocorre sob a “orientação do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia”.

Esvaziados os bancos de capitais nacionais, entregues que foram a “autênticos parasitas”, o Estado perdeu ferramentas económicas e políticas para “aumentar a produtividade” do país, através do investimento em setores estratégicos. Mais: a má gestão dos principais bancos portuguesas, com as consequências para a economia que daí advieram, só contribuiu para o “aumento das desigualdades sociais”, concluiu Armando Miranda.

O deputado Miguel Tiago acabaria por colocar as coisas nestes termos: o sistema bancário sofre de dois problemas estruturais. Um “problema de método”, ou seja, de má gestão ou mesmo de gestão dolosa, e um “problema de natureza” — “os bancos privados servem para acumular capital e especular”. Depois, se a corda rebentar, os Estados são chamados a pagar.

Nós somos assaltados pelo banqueiro e pelo Estado, direta e indiretamente, quando põe lá dinheiro e depois aumenta impostos. Para isso ficamos com os bancos, já que os pagámos”, sugeriu Miguel Tiago.

E não foi a única sugestão deixada pelos comunistas. Aliás, Jorge Pires foi muito preciso a elencar as posições do PCP em relação à banca portuguesa. Com a possibilidade de o BPI vir a adquirir o Novo Banco, assim os espanhóis do Caixa Banco resolvam o diferendo com Isabel dos Santos, o dirigente comunista foi avisando que o PCP “tudo fará para que esse cenário não se concretize” e para que o “Novo Banco não seja vendido”. Ah, e outro recado: os comunistas nunca aceitarão a injeção de capital privado na Caixa Geral de Depósitos. “Não aceitaremos isso. Esse é um ponto de honra”, assegurou Jorge Pires. Para António Costa ouvir e registar.

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A União Europeia voltaria ao centro das discussões, desta vez não pelas políticas nocivas que impõe a Portugal, mas por ser parte de uma estratégia “neoimperialista” liderada pelos Estados Unidos, cujo objetivo é manter o controlo do globo. Lá ao fundo, na outra ponta do recinto, confortado à esquerda por uma banca decorada por imagens de Iuri Gagarin e material de propaganda soviética e à direita por uma pequena e improvisada loja de uniformes e boinas camufladas, o “Palco da Solidariedade” serviu de diálogo, primeiro, entre os vários “partidos-irmãos” da América Latina (Brasil, Colômbia, Chile e Nicarágua) e, depois, para uma conversa com os representantes dos partidos comunistas do Irão, Líbano e Rússia.

Os yankees acabaram acusados de serem “os principais responsáveis pelas tragédias na América Latina” e de pela grande instabilidade que se vive no Médio Oriente. Tudo em nome de uma “estratégia de dominação global”, suportada pelo controlo mediático e do sistema financeiro mundial, e por uma máquina militar assombrosa, empenhada em “ações provocatórias” e de confronto permanentemente, como resumiria Jorge Cadima, membro da secção internacional do PCP. “Basta ver como a Rússia, hoje capitalista, é tratada com a mesma ferocidade” com que era brindada a União Soviética. E “outro grande país”, a China, considerada um “alvo a abater” pelos Estados Unidos. “O imperialismo é um sistema opressivo”, que “colonizou grande parte da humanidade”.

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É preciso uma mobilização das “massas” para que seja possível travar esse ímpeto, foram dizendo os representantes dos “partidos-irmãos”. Como? Neutralizando a influência dos Estados Unidos junto da oligarquia colombiana, lutando contra a “ingerência dos norte-americanos” no Chile e combatendo a “classe dominante no Brasil“, “profundamente “antidemocrática” e “extremamente submissa aos planos neo-imperalistas” dos Estados Unidos (e da União Europeia).

Ao mesmo tempo, é preciso levar a julgamento Durão Barroso, George W. Bush e todos “os responsáveis pelos maiores crimes cometidos no Médio Oriente” e dar uma resposta inequívoca ao “imperialismo liderado pelos Estados Unidos, que ia preferir ver o mundo destruído” a vê-lo pintado de vermelho, foram dizendo os “camaradas” do Irão e do Líbano. Aí, quando os povos de todo o mundo perceberem que os “partidos sociais-democratas mentem, levantar-se-ão contra o poder burguês e o socialismo vencerá“, atirou Yuri Emelyanov, do Partido Comunista da Federação Russa.

Estava cumprida a tradição de receber as delegações internacionais dos partidos-irmãos. Este domingo, no terceiro e último dia da organização, será a vez de Jerónimo de Sousa conduzir o comício de encerramento da 40ª edição da Festa do Avante!.