No seu avanço para Ocidente durante a II Guerra Mundial, os soldados do Exército Vermelho violaram mulheres, sobretudo alemãs, mas também polacas, croatas, romenas, húngaras e até russas prisioneiras em campos alemães, a uma escala de milhões. Estas atrocidades foram não só toleradas como incitadas por dirigentes, comissários políticos e altas patentes militares. Quando o líder da resistência comunista jugoslava Milovan Djilas, e futuro dissidente, protestou junto de Estaline, este respondeu-lhe: “Um soldado que atravessou milhares de quilómetros entre fogo e sangue tem direito a divertir-se com uma mulher e a roubar umas ninharias.” Alexander Solzhenitsine, então um jovem capitão do Exército Vermelho, fala abertamente das violações em massa de mulheres alemãs de todas as idades, desde menores a anciãs, no seu impressionante poema narrativo “Noites Prussianas”.

[Veja o “trailer” de “Agnus Dei – As Inocentes”]

É um destes episódios que está na base de “Agnus Dei – As Inocentes”, o novo filme da realizadora francesa Anne Fontaine, que também o escreveu com o experientíssimo Pascal Bonitzer, inspirados na história real vivida por uma médica francesa. Estamos na Polónia, no inverno de 1945, logo após o fim da II Guerra Mundial. Uma jovem médica da Cruz Vermelha Francesa, Mathilde Beaulieu (Lou de Laâge), acorre ao chamado de uma freira de um convento de beneditinas onde uma rapariga a dar à luz. Pensa tratar-se de uma jovem da vila que lá foi acolhida, mas acaba por lhe ser revelado que várias das irmãs foram violadas por soldados soviéticos, ficaram grávidas e não irão abortar, por razões óbvias. As freiras pedem-lhe encarecidamente, ajuda e sigilo. E ao auxiliá-las sem dizer a ninguém, Mathilde quase é, também ela, uma noite, violada num posto de controlo soviético.

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[Veja a entrevista com a realizadora Anne Fontaine]

Em “Agnus Dei – As Inocentes”, Anne Fontaine filma o encontro entre dois mundos opostos. É que Mathilde é comunista, filha de comunistas e ateia, e confronta-se com o mundo da fé, da reclusão, da devoção total e do perdão que é o das freiras. Estas, pelo seu lado, que vivem com Deus e no isolamento, têm que enfrentar a brutalidade, a gravidez e a maternidade, a que vão reagir de maneiras muito diferentes, e uma inevitável abertura ao exterior de que até então estavam protegidas. No convento, a médica encontra uma preciosa aliada, a bondosa e compreensiva irmã Maria (Agata Buzek). Mas tem também uma adversária na Madre Superiora (Agata Kuleszka), que aceita relutantemente a sua presença e a sua ajuda. E à qual custa tolerar a situação que se vive no mosteiro, com freiras de esperanças, bebés a nascer e o que fazer com eles para que ninguém desconfie e o opróbrio desabe sobre a instituição.

[Veja uma conversa com a realizadora e a actriz Lou de Laâge]

É um tema delicado, cheio de nervos sensíveis e propício a derrapagens facilmente melodramáticas ou a tropeções de simplismos piedosos, mas a realizadora de “Nathalie” e “Gemma Bovery” não perde o pé. Fotografado em tons soturnamente invernosos por Caroline Champetier, com diálogos medidos e pesados à vírgula pela realizadora e Bonitzer, e um formidável conjunto de atrizes quase todas desconhecidas, este filme sobre a devastação dos inocentes pela guerra põe-se do lado da vida. Fontaine mostra a complexidade emocional, ética, psicológica e espiritual da situação das protagonistas, e as suas perplexidades, tensões, angústias e interrogações, da descrente e materialista Mathilde, confrontada com o mundo e os valores das religiosas, às várias e díspares reações destas a uma maternidade que julgavam nunca ir conhecer. E usa uma câmara sempre discreta, tem um toque dramático de veludo e nunca julga, estereotipa ou moraliza. Produzido pela França e pela Polónia, “Agnus Dei – As Inocentes” ganhou o Prémio do Público na Festa do Cinema Francês e é um dos melhores filmes europeus deste ano.