Título: O Pai
Autores: Anders Roslund e Stephen Thunberg
Editora: Planeta
Páginas: 520
Preço: 21,90 €

O Pai

Anders Roslund – co-autor de O Pai – faz parte de uma das mais recentes gerações da “peste escandinava”, salvo seja, que tem grassado no romance policial e que, com o importante contributo do cinema, e sobretudo da televisão, se transformou numa epidemia de proporções universais. Roslund é mais ou menos contemporâneo, por exemplo, do norueguês Jo Nesbo, ou da islandesa Yrsa Sigurdardottir, bem conhecidos entre nós, ou do ultra conhecido Stieg Larsson, da saga Millenium, mais recentes neste campo do que outras figuras marcantes e uma quinzena de anos mais grisalhas, como o norueguês Gunnar Staalesen ou o mais falado Henning Mankell, sueco e moçambicano adotivo, criador do inspetor Wallander.

Neste livro, Roslund afasta-se um tanto da linha que o consagrou. Até Made in Sweden, outro nome, ou subtítulo, deste livro, Roslund manteve uma parceria muito bem-sucedida com Börge Hellström numa série de aventuras investigativas do comissário Ewert Grens. Confesso que não li nenhum dos livros dessa série mas foram todos diversamente festejados e premiados, com destaque para “Três segundos”, já publicado também em Portugal. Roslund tem atrás de si uma carreira como jornalista e comentador na televisão, Hellström, um cadastro criminal; passou de delinquente e pensionista dos estabelecimentos penais do Estado a respeitável crítico do sistema correcional sueco e fundador de uma instituição dedicada à prevenção do crime (pormenores disponíveis na internet, em sueco).

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Neste caso, Roslund escreve mais uma vez em colaboração mas não com o seu parceiro habitual e a história e os seus protagonistas não são total criação sua; baseiam-se num caso e em personagens da vida real, que o seu co-autor Stefan Thunberg conheceu de perto: o caso do Millitärligan (o “gangue” ou “Liga Militar”, um grupo que nos anos 90 do século passado assaltou inúmeros bancos na Suécia, com uma meticulosidade e sangue-frio que lhe garantiram total impunidade durante muitos meses.

Tiveram um bocadinho mais do que os proverbiais quinze minutos de fama. Thunberg é irmão dos principais membros desse grupo, de que o seu pai a certa altura também fez parte – que acabaram todos na cadeia. Estamos a meio caminho entre a reportagem literária de In cold blood de Capote ou The Executioner’s Song de Mailer, ou do mais recente Blood will out de Walter Kirn (de “Nas nuvens”), e as ficções criminais que têm por cerne o “assalto” e os seus métodos e vicissitudes e em que as idiossincrasias psicológicas dos protagonistas desempenham sempre um papel, normalmente fatal. (Impossível não lembrar The Asphalt Jungle, o livro de W. R. Burnett de que John Huston fez em 1950 um clássico do cinema “noir”, Quando a cidade dorme: “O homem, biologicamente considerado … é o mais temível dos animais de presa e, na verdade, é mesmo o único que preda sistematicamente a sua própria espécie”, reza a sentenciosa epígrafe do livro, tirada de William James, ou o Roubo no hipódromo, 1956, de Stanley Kubrick – dois filmes que têm em comum um inolvidável Sterling Hayden – ou o Rififi de Jules Dassin, em França, etc., etc.).

Habitação social miserável, pais alcoólicos, violência doméstica, perversão, filhos ao Deus dará – é o que vemos em O Pai e em muitos dos relatos, repletos de polícias vendidos, políticos venais ou ricaços sem escrúpulos, daquilo a que se pode dar a designação em voga de nordic noir, nem sempre muito exata, mas cómoda. Na pré-história da sua atual explosão escandinava, os comunistas suecos Sjöwall e Wahlöö usaram o género policial para uma crítica sub-reptícia da “social-democracia” local à luz de um marxismo mais ortodoxo. (Ainda havia – valha-nos Deus, como diria Jerónimo de Sousa – quem acreditasse num socialismo “verdadeiro” e no futuro radioso dos regimes comunistas.) O nordic noir está assim marcado desde os primórdios por levantar o véu sobre o que há de podre no reino aparentemente modelar das sociedades escandinavas – sejam a da Dinamarca, de que falava imaginariamente Shakespeare, ou as de outros reinos ou repúblicas do Norte.

Fora deméritos ou méritos, o facto é que graças à grande difusão destas ficções “menores” todos as conhecemos com uma familiaridade que não existia antes. As ruas de Estocolmo ou de Oslo, os cafés rançosos das terreolas ou os lugares da moda das grandes cidades começam a não ter segredos para nós. Descobrimos que são frequentados por gente tão boa ou tão má, tão egoísta, destrambelhada, mesquinha, infeliz ou corrupta como qualquer de nós. Também ainda não foi ali que nasceu o “homem novo”.

Made in Sweden, sofre em muitas ocasiões do estilo que Janet Maslin, numa simpática crítica a “Três segundos”, resumiu com alguma graça e acutilância: uma “verbosidade de afetado desencanto”, que trata por tu “os sete anões do noir escandinavo”: “Remorso, Taciturno, Meditabundo, Lamecha, Perverso, Lúgubre e Tudo-Menos-Envergonhado”. Sem chegar a perder a capacidade de nos fazer continuar a ler, O Pai tem tendência a alongar-se e a mover-se ao ritmo “glaciar”, como diria a outra, que também caracteriza alguns congéneres. (Pequeno exemplo de redundância à Hemingway pobre: um dos protagonistas está à espera de ver nos classificados um certo anúncio. Não o encontra. Lê, passo a citar: “Pessoal. Inger e as filhas Fanny e Mia. Por favor contactem-nos de imediato. Anita. Havia só dois anúncios naquele dia. Estarei à tua espera no ferry. B. Alguém chamado Anita. E alguém que ia encontrar-se com outra pessoa qualquer no ferry”. Bem nos parecia).

O Pai não é propriamente “inebriante”, como promete a publicidade. E tem irritantes arrebiques de pretensão “literária”. Mas pode ler-se.