Aos 93 anos de idade, Rogério Lantres de Carvalho, mais conhecido como Pipi, tem uma jovialidade admirável. Tal como a memória. Conta sempre muito bem a história e acrescenta-lhe pormenores deliciosos. Quando lhe falamos de Lipo Herczka, a resposta é imediata. “Bom homem, sem dúvida, mas impossível quando estava de mau-humor. Sem razão aparente, no meio do treino, insultava este e aquele. Veja lá bem que de tão habituados já estávamos que nem o ligávamos nessa altura.”

É Lipo Herczka, o primeiro treinador a sagrar-se tricampeão nacional. Entre 1936 e 1938, pelo Benfica. E também o primeiro treinador campeão espanhol pelo Real Madrid, em 1932. Há 84 anos, Lipo comete uma proeza assinalável e nunca mais repetida: campeão espanhol sem derrotas, com dez vitórias e oito empates. Nem assim o húngaro ganha pontos em Madrid e o presidente Luis Usera demite-o num abrir e fechar de olhos, em substituição de um adjunto chamado Santiago Bernabéu (esse mesmo, o homem-estádio). As más-línguas falam de falta de pulso para controlar o balneário madridista e ainda da derrota com o Deportivo, então na 2.ª divisão, na primeira eliminatória da Taça Generalíssimo (agora Taça do Rei) também influi na decisão de despedir Lipo. Este não se faz rogado e vai para Alicante. Assina pelo Hércules e é campeão da 3.ª divisão. Na época seguinte, é despedido outra vez, a 14 Janeiro 1934 e assume o Granada até 1935.

Nesse ano, muda completamente de ares. Adopta Portugal como pátria e o Benfica como clube do coração. O irmão Desidério acompanha-o e estabelece-se no Barreiro. A 5 Fevereiro 1939, dá-se até um curioso (e inédito) encontro de irmãos na liga portuguesa. No Campo do Rossio, acaba 1-1. Na segunda volta, ganha Lipo por1-0. Ao longo de quatro épocas, Lipo ganha as tais três ligas consecutivas mais um Campeonato de Portugal, antecessor da Taça de Portugal – com este nome, é ele um dos finalistas da primeira edição, em 1939, ganha pela Académica por 4-3 nas Salésias, no seu 153.º e último jogo. Ao Benfica, seguem-se outros clubes portugueses.

Como o FC Porto, pelo qual é tricampeão regional entre 1943 e 1945. Também treina Académica, Vila Real, Estoril e União de Montemor. É lá (em Montemor-o-Novo) que Lipo morre a 14 Março 1951. E é também lá (no Cemitério de São Brissos, em Montemor-o-Novo) que é enterrado. Um tímido telefonema para a Câmara Municipal de Montemor-o-Novo ajuda a explicar o fenómeno. À pergunta sobre Lipo Herczka, não há quem não o conheça. Sobre ele, muito se escreve. Carlos Carvalho, dirigente do Benfica e jornalista, elogia-o.“Teve a rara intuição de saber adaptar as qualidades do futebolista português, de combatividade, ao estilo solto do futebol austríaco, onde a desmarcação e o toque suave de bola têm cunho de arte.”

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Tanta lenga-lenga para quê? Ora bem, Lipo é o único homem a ter ganho o clássico no Porto pelas duas equipas. Uma vitória pelo FCP em Dezembro 1944 (Araújo sela o 4-3 aos 76 minutos), outra pelo SLB em Abril 1948 (Rogério e Melão, 2-0). Histórico. E o outro lado da moeda, por acaso existe? Sim senhor e é um nome inesperado, avisamos já. Chama-se Artur Jorge. Perde pelo FCP em Abril 1991 (bis do suplente César Brito, 2-0) e também pelo SLB em Março 1995 (Zé Carlos, JVP e Drulovic, 2-1). “Sou portuense e portista. Como a minha família. Nasci no Porto e cheguei a ver, veja lá bem, jogos na Constituição [campo do FC Porto, de 1912 a 1952]. Lembro-me nitidamente de um Porto-Oriental e eu lá todo espremido entre os adeptos, que, não sendo muitos, entre 4 a 5 mil, enchiam aquele campo e conferiam uma atmosfera especial. Também vi jogos no Estádio do Lima [só utilizado para jogos grandes por ter mais lugares que o da Constituição]. Nessa altura, o Porto nem sempre era a terceira potência do futebol português. Agora, com o passar dos anos, com o Estádio das Antas, com o Dragão, com o centro de estágio no Olival, percebemos a real dimensão do clube. No meu tempo de criança, ninguém sonhava sequer que o FC Porto pudesse ser campeão europeu. Quando muito, campeão nacional e e… Agora é uma máquina que não vai parar. Se for travada, será um dano insignificante como uma folha de papel contra um Fórmula 1.”

Artur Jorge junta mais um dado, também joga pelos dois. “Na minha única época sénior pelo FC Porto. Empatámos 1-1 e o Eusébio foi expulso. E na primeira parte [38 minutos]. Se não me engano, foi a única expulsão da carreira dele.” Isso mesmo, da autoria do aveirense Porfírio Silva. “Foi um pouco caricato porque ele estava a ajeitar a bola para marcar um livre e, de repente, já estava fora do campo. Ao que parece, o Porfírio disse-lhe para não mexer na bola mas…Do que me lembro bem é de ouvir os aplausos nas Antas. Mas não eram aplausos de ironia. Nada disso. Tanto assim é que as palmas aumentaram de tom quando Pedroto [treinador do FC Porto] se levantou e cumprimentou o Eusébio.” Depois, Artur Jorge transfere-se para a Académica e vai parar ao Benfica, onde joga com Eusébio e até lhe arrebata dois títulos de melhor marcador do campeonato nacional. “Houve um clássico que me ficou na memória porque marquei dois golos. Ou um. Sempre houve polémica. Um jornal deu-me o golo, o outro concedeu autogolo ao Valdemar. Bem, isso até nem vem ao caso, a verdade é que foi 6-0 para o Benfica nas meias-finais da Taça de Portugal. Isso foi em 1971-72, quando o Benfica levava 12 jogadores à selecção e jogavam dez de uma vez. Seis-zero. Onde é que alguma vez nos tempos de hoje há este desequilíbrio entre as duas forças? Posso dizer que ao jogar nessa tarde dos 6-0 fiz parte de uma história irrepetível.”

A viagem dos treinadores só se completa com Bela Guttmann, o único treinador campeão por FCP e SLB. Tudo começa no Aeroporto da Portela, no primeiro dia de Novembro 1958. Às 19h50, um voo de Viena transporta 72 passageiros. Um deles é o senhor Bela Guttmann. Apanha o autocarro para as Antas. E também apanha o comboio do campeonato à 8.ª jornada. Guttmann substitui o brasileiro Otto Bumbel, vencedor da Taça de Portugal na época anterior e já em litígio com a direcção azul desde a 1.ª jornada, quando pede a demissão depois de um 3-3 com o Vitória FC. No final de Outubro, outro empate, este com a Académica (1-1), é a gota de água, aliada ao facto de ter recebido dinheiro por fora (as denominadas luvas) para a transferência do carismático Jaburu, do Porto para o Celta Vigo.

Do Porto, chamam por Guttmann. Por aquelas bandas, ninguém pensa em ser campeão nacional. O Benfica já tem três pontos de avanço e segue invicto. Guttmann chega a transforma o campeonato nacional. É a época do último título de campeão nacional dos portistas antes da seca de 19 anos (até 1977-78). O Porto vence o campeonato por um golo de diferença. Com dois empates entre os candidatos (0-0 nas Antas e 1-1 na Luz), o título está bem perto dos encarnados, com os mesmos três pontos de vantagem a quatro jornadas do fim. Dois empates, em Setúbal e no Restelo, e uma derrota em Alvalade, no tal jogo em que o defesa Ângelo é expulso, antes de agredir adversários e até um vendedor de gelados/apanha-bolas, permitem a aproximação dos portistas. Na última jornada do campeonato, a 22 Março, tudo se decide a favor dos portistas: 3-0 ao Torreense, com dois golos de rajada, mesmo no final, e de nada vale o 7-1 do Benfica à CUF, com o árbitro Inocêncio Calabote em plano de destaque: começa o jogo cinco minutos mais tarde que o das Antas, assinala três penáltis, todos convertidos por Águas – que assim ultrapassa Teixeira (FCP) e é o melhor marcador da competição – e dá sete minutos de desconto, quando não se justifica tanto tempo.

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O Porto, campeão, quer renovar contrato. Guttmann, não. Já tem tudo tratado com o Benfica. De feiticeiro a mago intrujão. A troco de exigências impensáveis para a época: 400 contos líquidos por ano (equivalente a 134 euros), 150 pelo título nacional, 50 pela Taça de Portugal e 200 pela Taça dos Campeões. Não, 200 não. Um dirigente bem-disposto e, pelos vistos, nada crente, encoraja-o a subir a parada para 300 (102 €) e é o que se vê. O Benfica vence duas Taças dos Campeões pelo Benfica, em 1961 e 1962, e só Guttmann recebe mais que toda a equipa junta. Na ocasião do bicampeonato, é nomeado comendador, tal como os jogadores, numa sessão com Américo Tomás e António Salazar. À saída de São Bento, vira-se para Fezas Vital, que substituíra Maurício Vieira de Brito na presidência do Benfica, e segreda-lhe que se iria demitir. “Não posso treinar 14 comendattori”.

Todos julgam que é bluff, só que Guttmann sai mesmo. Voltaria à Luz em 1965, mas a sua estrela já está pálida e tudo perde para o Sporting (campeonato e Taça). Às Antas, também voltaria, a convite de Américo de Sá. “Continuo o mesmo, de chicote na mão, sem liberdade para os jogadores”, constata no (re)início. Nada feito, Guttmann perdera a magia de ter sido o único treinador campeão pelos dois grandes e, ainda por cima, em anos seguidos.