Foi um interrogatório bizarro. Entre citações da Bíblia e declarações de indigência, Orlando Figueira jurou no Tribunal de Instrução Criminal (TIC) de Lisboa que preferia regressar à prisão de Évora a continuar a ser sustentado pela sua irmã. No fundo, Figueira queria que o tribunal levantasse parcialmente o arresto dos bens e das suas contas, mas as magistradas responsáveis pela investigação do chamado caso Manuel Vicente manifestaram a sua oposição a essa pretensão e o TIC deu-lhes razão.
Durante o interrogatório judicial, Orlando Figueira chegou mesmo a citar o Evangelho segundo São Mateus, capítulo 7.º, afirmando que “julgador acima que nunca se engana, na medida em que julgamos seremos julgados”. Uma alusão inspirada na seguinte frase da Bíblia: “Do mesmo modo que julgardes, sereis também vós julgados”. É o chamado Sermão da Montanha, em que Jesus ensina pela primeira vez o Pai Nosso e que constitui um dos princípios fundadores da Igreja: o ensinar a não julgar os outros, a antes olhar para os nossos próprios erros.
A citação foi considerada “despropositada” pelas procuradoras, por ser uma “intenção de exercer uma pressão ilegítima e sem suporte legal sobre o juiz de instrução criminal”.
Segundo a revista Sábado, que noticiou a decisão do TIC na sua edição em papel desta quinta-feira, o juiz João Bártolo rejeitou o requerimento de Figueira para a revogação das medidas de coação e do arresto judicial, tendo comunicado a sua decisão à defesa no dia 10 de maio. Contudo, de acordo com o despacho citado pela revista, o TIC abriu a porta da prisão ao procurador que trabalhou no DCIAP entre 2008 a 2012.
O Observador tentou contactar Paulo Sá e Cunha, advogado de Orlando Figueira, mas, até ao momento, não teve sucesso.
A indigência
Surpreendidas com um pedido de interrogatório complementar, as procuradoras Inês Bonina e Patrícia Barão contestaram por escrito os argumentos apresentados pelo seu ex-colega, acompanhado do advogado Paulo Sá e Cunha, no dia 3 de maio.
Acusado de corrupção passiva na forma qualificada, branqueamento de capitais, falsificação de documento e violação do segredo de justiça em fevereiro de 2017, Orlando Figueira esteve em prisão preventiva na cadeia de Évora, a mesma onde José Sócrates esteve detido no âmbito da Operação Marquês, entre fevereiro e junho de 2016 — data em que passou a prisão domiciliária com vigilância eletrónica.
Figueira pediu para ser ouvido ao abrigo de um artigo do Código de Processo Penal que permite o reexame dos pressupostos das medidas de obrigação de permanência na habitação, se se verificarem novos factos que possam alterar tal situação.
E o que alegou Figueira durante o seu interrogatório?
- Reiterou a sua inocência, não desejando prestar declarações sobre os factos do processo;
- Que esteve preso na cadeia de Évora até 30 de Julho de 2016, sendo as suas despesas à data suportadas pela irmã — familiar que continua a sustentá-lo;
- E que tem os bens arrestados, encontrando-se numa situação de indigência, sem meios de subsistência.
De acordo com um despacho do Ministério Público que consta dos autos do processo consultado pelo Observador, Figueira terá insistido que, caso não lhe fosse permitido “levantar um quanto mensalmente para poder sobreviver, será forçado a ter de voltar para a cadeia de Évora”, lê-se no despacho.
O ex-procurador do DCIAP explicou que “não é nenhuma chantagem” mas insistiu que “não tem meios de subsistência”. “A irmã felizmente tem possibilidades mas chega a uma altura” em que não pode, já que “não é sua mãe”. E, “mesmo que fosse, o arguido tem 55 anos, pelo que é forçado, o Tribunal obriga-o, a voltar à cadeia de Évora”.
Por tudo isto, insistiu que, “no pleno das suas capacidades mentais, considera que é forçado a voltar para a cadeia”, caso o TIC assim determinasse.
A recusa
As magistradas do DCIAP, contudo, não deram credibilidade ao seu testemunho. Pior: consideraram que ele representava uma chantagem sobre a Justiça. “Esta aparente pretensão do arguido de ser sustentado pelo sistema prisional” revela “uma intenção de exercer uma pressão ilegítima e sem suporte legal sobre o Juiz de Instrução Criminal, intenção essa que é, aliás, transversal a todo o interrogatório”, lê-se no despacho do MP.
As procuradoras do DCIAP consideraram que a prova de tal pressão eram as “despropositadas alusões à existência de um “julgador acima que nunca se engana, na medida em que julgamos seremos julgados, como diz o Evangelho segundo S. Mateus, capítulo 7.º”.
Por outro lado, o MP manifestou a sua oposição ao pedido da defesa por entender ser “completamente inadmissível que tenha sido solicitada a realização de um interrogatório complementar que teve como finalidade única, como era intenção do arguido e foi pelo mesmo confirmado nessa diligência, a apreciação de pretensão de levantamento de bens em sede de arresto, uma vez que obviamente não terá o arguido intenção de regressar à cadeia. Caso fosse essa a sua intenção, com o intuito de a alcançar teria revogado a autorização de vigilância electrónica, pretensão que nunca verbalizou”.
Acresce que a lei não permite o agravamento da medida de coação para prisão preventiva com “o fundamento de que seja o Estado a zelar pelo sustento do arguido através do sistema prisional. Para tal finalidade existem outros serviços estatais, aos quais o arguido poderá recorrer, caso assim entenda, e se verifique a referida situação de indigência, a qual, a nosso ver, se encontra longe de estar comprovada nos autos”, escrevem as magistradas.
Os argumentos da defesa
Após o interrogatório, Orlando Figueira, por seu lado, solicitou que o TIC de Lisboa decidisse o seguinte:
- “A revogação das medidas de coacção a que se encontra sujeito”;
- “A redução do arresto preventivo de forma a que o arguido possa prover ao seu próprio sustento e, bem assim, honrar o compromisso a que se obrigou perante o BPAE, aquando da celebração do contrato de mútuo”;
- “Caso assim não se entenda, deverá ser satisfeita a pretensão pessoalmente manifestada pelo arguido de ser novamente sujeito a medida de coacção de prisão preventiva”.
O MP manifestou a sua oposição a estes argumentos utilizando a mesma informação acima exposta, acrescentando os seguintes argumentos:
- “Apenas foram arrestados ao arguido os saldos das suas contas bancárias (cerca de 589.500 euros), tendo o mesmo permanecido com a disponibilidade do seu património imobiliário e mobiliário;
- “A sua irmã dispõe de condições económicas para o sustentar e até à data não manifestou já não estar disponível para o fazer”;
- “Nem do estilo de vida que o arguido continua a manter, nem pela não alienação de património, se retira que esteja a passar por dificuldades económicas e muito menos que se encontre numa situação de indigência”;
- “Mantêm-se inalterados os pressupostos de facto e de direito em que assentou a aplicação ao arguido da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação. O perigo de fuga assenta na circunstância de o arguido ter familiares a residir na Tailândia (cunhado), nos EUA (filho) e de ter relações de grande proximidade com Angola, país onde referiu por várias vezes que não se importava de viver”.
Pior: as procuradoras do DCIAP promoveram o pagamento de uma “taxa sancionatória excepcional”, pois o “interrogatório foi solicitado com escopo completamente ao alheio ao fundamento legal invocado para que fosse conseguido o seu agendamento, com prejuízo para o tempo e disponibilidade de magistrados, funcionários e restantes intervenientes processuais”, além de a diligência ser “inadmissível para o fim visado”.
De acordo com a revista Sábado, o TIC de Lisboa rejeitou o requerimento da defesa de Orlando Figueira mas abriu-lhe as portas da prisão. “Admitindo que não tenha efetivamente qualquer património ou rendimento, não é caso único, o do arguido Orlando Figueira, ocorrendo na vida dos tribunais situações em que os arguidos ficam em prisão preventiva por não terem condições de execução da obrigação de permanência em habitação com vigilância eletrónica (por vezes, por nem sequer terem habitação, por não terem meios de subsistência ou por não conseguirem os consentimentos devidos)”, lê-se no despacho judicial citado pela revista.
Corrigida informação sobre o local do interrogatório que ocorreu no Tribunal de Instrução Criminal e não no DCIAP.