Há vários caminhos e muitas portas, um jardim labiríntico e nove hectares em redor – mas por onde é que se entra no Museu Gulbenkian? A diretora sorri quando lhe falam deste dilema. “Já não tenho o olhar objetivo de quando aqui cheguei, já estou integrada, mas nos primeiros tempos ficava chocada quando os visitantes me diziam que não encontravam a entrada ou a saída”, conta Penelope Curtis. “Hoje, já respondo: ‘Sim, é normal, acontece muitas vezes’. Estou a tentar mudar isto há dois anos e penso que nos próximos meses já vamos ter nova sinalética nas entradas e no edifício, para tornar o percurso mais claro”, revela.

A mudança será discreta, como muitas das alterações introduzidas no Museu Gulbenkian por esta historiadora escocesa, de 56 anos, que foi diretora da Tate Britain, em Londres, antes de vir trabalhar para Lisboa – em setembro de 2015.

Quarta-feira de manhã, no gabinete com vista para o jardim, fala ao Observador sobre “as novas dinâmicas do museu”. Revela, desde logo, números provisórios sobre o total de visitantes em 2017: 440 mil pessoas, decréscimo de cerca de 20% em relação a 2016, aumento de idêntica percentagem em relação a 2015. “Os números não nos preocupam, além de que, por si mesmos, significam pouco. O importante é trazermos mais pessoas aqui pela primeira vez e, sobretudo, aumentar a diversidade de públicos”, comenta.

Formada em História Moderna na Universidade de Oxford, em 1982, e com doutoramento em História da Escultura francesa, pelo Instituto de Arte Courtauld de Londres, explica nesta entrevista as principais mudanças que tem feito no museu desde que tomou posse e antecipa uma intenção: quer comunicar mais com idosos isolados, crianças desfavorecidas, imigrantes e refugiados. “É um sinal dos tempos”, justifica.

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Penelope Curtis fala a maior parte do tempo em inglês, mas não se importa que as perguntas sejam em português. Revela uma simpatia contida. É eficiente na maneira como responde, sem divagações, mas mantém uma postura firme. Parece não apreciar a aura de veneração que muitas vezes envolve os diretores de museus, por isso, prefere descrever-se como curadora.

“Quando alguém se torna diretor de museu gosta de pensar essencialmente no estatuto. Tendo estas funções, prefiro ver-me como curadora porque é isso que me fascina e me estimula a trabalhar. Se tivesse de escolher uma palavra para descrever a minha profissão, seria curadora, não diretora. É muito fácil um diretor perder de vista a própria arte. Ser curadora significa estar mais perto da arte, na maneira de a ver, pensar e entender. Gosto de partilhar este interesse comum pela arte, fascina-me estar com os artistas, entender o trabalho deles, visitar exposições e perceber porque é que algumas funcionam e outras não.”

Já conhece muitos dos artistas plásticos e visuais que trabalham em Lisboa e classifica a criação portuguesa atual como “vigorosa e interessante, mas ainda pouco internacional”. “Londres, neste aspeto, é uma cidade de exceção, porque muitos dos artistas que lá trabalham não são britânicos. Aqui, a maioria é de Portugal, mas com uma linguagem adequada ao contexto internacional”, afirma.

Conta também que esta semana teve a última aula de língua portuguesa, depois de vários meses de estudo, a acrescentar ao curso intensivo de cinco semanas, quatro horas por dia, que fez assim que se instalou em Lisboa. “Não tinha ideia nenhuma da língua portuguesa antes de vir”, recorda. “Falo francês e italiano e achava que o português seria mais fácil. O vocabulário não é muito diferente, mas a pronúncia sim.”

À pergunta sobre se já está familiarizada com o país de acolhimento, responde com algum humor:

“Encontrei três maneiras de conhecer Portugal: visitas frequentes à Cinemateca Portuguesa, conversas com artistas e visitas a ateliers e também a leitura de Eça de Queirós. Para mim, é um autor fácil de ler. Além disso, no meu primeiro ano em Portugal visitei 31 museus um pouco por todo o país, e nos últimos meses estive em mais seis cidades portuguesas. O problema é que Lisboa é como Londres: é difícil sair daqui, estamos sempre muito ocupados.”

A exposição mais interessante que viu nos últimos 12 meses, confessa, foi no âmbito do Anozero – Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, uma iniciativa que começou em novembro e decorre até ao fim do ano. “Combinam espaços novos, que eu não conhecia, e espaços antigos, a que poucas pessoas costumam ter acesso. Têm uma boa mistura de obras de arte novas e antigas, bem distribuídas, o que resulta numa boa experiência para o visitante”, descreve.

A resposta dá o mote para aquilo que Penelope Curtis quer valorizar: o rumo que deu ao Museu Gulbenkian nos últimos dois anos. Desde logo, pôs em prática aquilo que os administradores da Fundação Calouste Gulbenkian, a casa-mãe, tinham já decido quando ela se candidatou ao cargo: juntar numa só entidade, e sob o mesmo nome, o Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão e o Museu Gulbenkian. Ambas as instituições são agora o Museu Gulbenkian e os respetivos acervos passaram a ser conhecidos como Coleção Moderna (que inclui arte contemporânea) e Coleção do Fundador (cerca de seis mil peças reunidas em vida pelo empresário arménio Calouste Sarkis Gulbenkian).

“Os detratores dizem que a unificação foi uma decisão orçamental, mas não me parece que isso tenha pesado assim tanto. Havia algumas pessoas a desempenhar o mesmo tipo de tarefas quer no Museu Gulbenkian quer no antigo Centro de Arte Moderna e, mais do que poupar dinheiro, procurou-se que a junção das duas instituições levasse à partilha de competências e saberes entre as duas equipas”, analisa.

A diretora prefere ver-se como curadora e não quer perder contacto direto com a criação artística

Penelope Curtis tem procurado estabelecer um diálogo entre as duas coleções, o que à partida parece difícil, dada a divergência de épocas, temas, estilos, suportes, origens e propósitos. “Não é óbvia a ligação”, admite. “A Coleção do Fundador foi feita ao gosto de uma pessoa já desaparecida e, portanto, é uma coleção fechada. Mas é um desafio interessante. Temos vindo a mostrar que se pode estabelecer este diálogo de forma visível e que não se tratou apenas de uma junção administrativa.”

Mas, em concreto, o que há de diferente no museu da Avenida de Berna? A diretora resume.

“Fizemos algumas mudanças pequenas e outras mais profundas, mas nem todas muito visíveis ainda. Alguns estudantes com quem falei há dias pensavam que estamos sempre a mostrar as mesmas obras da Coleção do Fundador. Na verdade, temos vindo a alterar a exposição permanente de forma subtil. O núcleo dedicado ao século XIX foi completamente renovado, o núcleo do século XVIII sofreu várias alterações também. Há novas folhas informativas para o visitante, em todos os núcleos. Queremos dar mesma importância à Coleção Moderna e à Coleção do Fundador. O desafio é estimular as pessoas a verem com regularidade as duas coleções e transmitir-lhes a informação de que haverá novidades a cada visita.”

Em termos de exposições temporárias, o Espaço Projeto – no âmbito do qual abre ao público nesta sexta-feira “Olho Zoomórfico/Camera Trap”, da artista portuguesa radicada em Nova Iorque, Mariana Silva – apresenta quatro exposições por ano de pequena dimensão, sobretudo de artistas jovens ou emergentes, cujos projetos são financiados pela Fundação. O ciclo Conversas, que neste momento exibe “Ana Hatherly e o Barroco. Num Jardim Feito de Tinta”, apresenta exposições de média escala, três vezes por ano, que fazem a ligação entre belas artes e artes decorativas, antigo e moderno, ocidente e oriente, assim conduzindo para perto da Coleção do Fundador o visitante que entra apenas à procura de arte contemporânea.

Além disso, Penelope Curtis decidiu organizar apenas duas grandes exposições por ano no edifício principal: uma de inverno, especialmente para o grande público português, e outra no verão, com entrada gratuita. Ambas concebidas a partir das peças das duas coleções. “Queremos aumentar a circulação nestes edifícios”, resume a diretora. Aumentar o número de visitantes é um dos objetivos. “Mas não é o primeiro objetivo”, esclarece.

“Primeiro, queremos que os visitantes estrangeiros possam, numa só visita, ver as duas coleções, o que nunca acontecia e agora já está a acontecer. Outro objetivo é atrair portugueses a ambas as coleções, para que usufruam do museu como espaço em mudança constante. Não queremos apenas mais visitantes, mas que o tipo de visitantes seja mais diverso. Queremos atrair pessoas que nunca visitaram o museu, pessoas mais jovens, pessoas de diversas etnias, com diferentes identidades. Temos uma coleção muitíssimo rica, com objetos de muitas geografias. Temos estado a trabalhar com refugiados do Iraque e do Irão e há obras que falam para eles. Até agora, a coleção era muito estática e estava a ser usada como um chamariz para turistas, em vez de um recurso de que se pode tirar partido.”

Se a Fundação Gulbenkian já hoje financia programas de desenvolvimento humano, cidadania ativa e qualificação de novas gerações, Penelope Curtis vê como natural que também o museu aposte nessas áreas. “São mudanças graduais”, começa por dizer, acrescentando que este posicionamento é adequado ao museu da Avenida de Berna, mas também um “sinal dos tempos” na museologia.

“Podemos trabalhar com pessoas de contextos desfavorecidos, muitas das quais não pensam no museu como um espaço que lhes interesse. Queremos ter mais projetos de nicho, com idosos que estão sozinhos e isolados, que não têm com quem falar. Podem vir ao museu e encontrar obras que as ajudem a falar da sua vida. Podemos também trabalhar com iniciativas de apoio a imigrantes ou refugiados e trazer mais crianças de contexto social ou económico desfavorecido. O museu é um excelente espaço para as pessoas se sentirem seguras, para receberem estímulos e começarem a abrir-se ao mundo.”

Exposição de Ana Hatherly, até 15 de janeiro, procura ligar arte contemporânea com coleção histórica do museu

A aquisição de novas obras para a Colecção Moderna, a única que a diretora entende dever ser expandida, tem um orçamento anual de meio milhão de euros. Em 2017, foi aplicado em obras de três dezenas de artistas modernos e contemporâneos. O principal objetivo das aquisições é o de “preencher lacunas retrospetivamente”, diz a responsável, o que tem implicado a compra sobretudo de pintura e escultura portuguesas da primeira metade do século XX, período sub-representado na Coleção Moderna (criada na década de 1950 e exibida a partir de 1983 no Centro de Arte Moderna).

As aquisições são aconselhadas por uma comissão de quatro pessoas externas ao museu – outra nova prática introduzida pela diretora. “A comissão veio ajudar a profissionalizar o processo de compras”, afirma.

“Até há pouco tempo, a compra de obras baseava-se em escolhas pessoais e ‘ad hoc’. Introduzimos um método e uma estratégia, o que ainda está a ser trabalhado. Sendo estrangeira num país que mal conhecia, achei que deveria ter aconselhamento externo, a acrescentar ao conhecimento e às opiniões dos nossos curadores. A decisão final é do Museu Gulbenkian, mas é bom ouvir vozes de fora da instituição. Estou muito satisfeita com o resultado.”

Outra das funções daquela comissão externa é a de ajudar a gerir os muitos pedidos que chegam à direção. “Recebo muito mais contactos aqui do que recebia na Tate, porque lá as pessoas percebiam que esta não é uma boa maneira de fazer as coisas. Aqui, escrevem-me e telefonam-me com regularidade”, revela, referindo-se presumivelmente a galeristas, artistas e curadores, com ideias para exposições e propostas de venda de obras.

Penelope Curtis sublinha que as novas aquisições não vão mudar a matriz portuguesa da Coleção Moderna, mas gostaria que esta desse mais atenção a obras do espaço lusófono e a artistas que, não sendo portugueses, trabalham em Portugal ou são oriundos de países africanos que mantiveram ligações ao país.