Portugal prepara-se para extraditar, pela primeira vez, um cidadão com nacionalidade portuguesa para o Brasil. Depois de uma longa batalha jurídica, Raul Schmidt, arguido na Operação Lava Jato, conseguiu que fosse reconhecida a nacionalidade de origem (por ser neto de portugueses), mas o Tribunal da Relação considerou que o conseguiu tarde demais, quando o processo de extradição já estava terminado. O princípio da reciprocidade tem evitado extradições entre os dois países, como aconteceu com figuras como o padre Federico (do Brasil para Portugal) ou Duarte Lima (do Portugal para o Brasil), ambos relacionados com casos de homicídio.

Raul Schmidt, que é suspeito do crime de corrupção no Brasil no âmbito da Operação Lava Jato, não terá a mesma sorte. Segundo apurou o Observador junto da defesa do arguido, Raul Schmidt ainda vai recorrer para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, uma vez que se esgotaram todas as hipóteses de recurso em Portugal. Mas isso não evitará que seja entregue às autoridades brasileiras.

O empresário luso-brasileiro tem pendentes na 13.ª Vara Federal da Justiça Federal, em Curitiba, dois processos por corrupção, organização criminosa e branqueamento de capitais. As autoridades brasileiras suspeitam que Raul Schmidt agiu como intermediário de operações da Petrobras, pagando luvas a Renato de Souza Duque, Nestor Cerveró e Jorge Luiz Zelada, todos ex-diretores da petrolífera estatal brasileira. Em 2015 foi emitido um alerta em seu nome pela Interpol e, em março 2015, a PJ apanhava-o num apartamento de luxo em Lisboa.

O processo de extradição começou aí, com Schmidt a querer ser julgado em Portugal — o que criaria uma situação insólita, já que o juiz Sérgio Moro teria de vir a Portugal. Na tentativa de não ser enviado para o Brasil, Schmidt tem-se agarrado a um argumento principal: a nacionalidade portuguesa. Do seu lado tem o artigo 33.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa que estabelece que “a extradição de cidadãos portugueses do território nacional só é admitida, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional“. E, também, a Constituição Brasileira que proíbe essa extradição de cidadãos de origem (daí que tanto o padre Frederico e Fátima Felgueiras não tenham sido extraditados quando a polícia portuguesa o solicitou).

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Mas a história não é assim tão simples. Raul Schmidt obteve a naturalidade portuguesa em 2011, o que não lhe conferia os mesmos direitos de um nacional de origem. Podia, assim, ser julgado no Brasil pelos crimes cometidos até 14 de dezembro de 2011, enquanto não era cidadão nacional. Segundo a justiça brasileira, os crimes terão sido cometidos pelo menos desde 2005 e até março de 2014.

Durante o Governo de Passos Coelho, em 2015, foi, porém, aprovada uma lei (Lei Orgânica n.º 9/2015) que dá aos netos de cidadãos portugueses a nacionalidade de origem. A defesa de Schmidt viu aqui uma bóia de salvação para o luso-brasileiro não seguir para o Brasil. Aos olhos desta lei, Raul Schmidt seria considerado cidadão português desde que nasceu. Ou seja: seguindo o mesmo princípio da reciprocidade — o mesmo que já lhe tinha apagado cerca de três anos de crimes — Schmidt não seria extraditado para o Brasil, já que era irrelevante a data em que cometeu os crimes.

E foi aqui que surgiu o primeiro obstáculo: a lei aprovada em 2015 não tinha sido regulamentada e só o seria dois anos depois. Durante esse tempo, o arguido do Caso Lava Jato pediu  pareceres a constitucionalistas como Paulo Otero, Gomes Canotilho e Nuno Brandão, ou Moura Ramos, antigo presidente do Tribunal Constitucional e especialista em nacionalidade, para argumentar em tribunal que a simples aprovação da lei já lhe garantia a nacionalidade. Mas o tribunal não teve o mesmo entendimento. Para considerarem a nova lei, precisavam do averbamento comprovado na conservatória. Que Schmidt (ainda) não tinha.

Uma batalha judicial cheia de derrotas

A batalha judicial tem sido longa e com sucessivas derrotas para o luso-brasileiro. A primeira decisão foi do Tribunal da Relação a 7 de dezembro de 2016 — que desde logo determinou a “extradição do arguido Raul Schmidt Júnior”. Schmidt recorreu, nesse mesmo dia para o Supremo Tribunal de Justiça que quase um ano depois (7 de setembro de 2017) confirmou integralmente a decisão da Relação.

O arguido voltou a reclamar do acórdão, e a levar uma nega a 28 de setembro. No entanto, apesar de recusar suspender o processo de extradição, o Supremo referiu que se a prova de nacionalidade viesse a existir, ela deveria ser considerada: “Se a mesma lhe vier a ser concedida, tal constituirá uma questão nova e autónoma que não deixará de ser prontamente suscitada e apreciada nos autos, com as consequências que então houver a retirar”.

Excerto de despacho do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de setembro de 2017, assinado pelos juízes do STJ, Francisco Caetano e Souto de Moura

Depois desta decisão, o arguido recorreu para o Tribunal Constitucional. A resposta veio a 6 de novembro de 2017: “Não conhecer o objeto do recurso“, lia-se. Schmidt insistiu e repetiu o recurso e obteve a mesma resposta a 12 de dezembro. Ainda reclamou do acórdão, mas a decisão chegaria já este ano, a 9 de janeiro de 2018: indeferido. Nesse dia, o processo de extradição transitou em julgado. Ou seja, ficou finalizado sem possibilidade de outros recursos.

Mas, por coincidência, foi nesse mesmo dia 9 de janeiro que Raul Schmidt conseguiu o averbamento de que é cidadão nacional de origem.

Excerto do averbamento que estabelece que o arguido passa a ser considerado português desde o seu nascimento.

E foi com base nesse trânsito em julgado o o juiz Américo Augusto Lourenço, do Tribunal da Relação, decidiu manter a decisão de extradição. Para este tribunal, todos os requerimentos que o arguido apresentou já apareceram “depois de [se] verificar que os tribunais de recurso tinham indeferido todas as pretensões do recorrente, vindo alegar factos e razões de direito que, com todo o respeito mais não são do que tentativas anómalas de obstar ao cumprimento das decisões tomadas e confirmadas em todas as instâncias.” Basicamente, o juiz “acusa” o arguido de estar a criar incidentes judiciais só para não ser extraditado (ou adiar a extradição) para o país onde nasceu.

Sobre os pareceres — os tais de Canotilho, Paulo Otero e Moura Ramos — “por mais respeito e consideração” que mereçam ao juiz — Américo Augusto Lourenço escreveu no despacho que “nada adiantam, nem interferem com o decidido pelos tribunais, cujas decisões transitaram.”

O juiz não teve assim em conta o averbamento e diz que esse “expediente” porque “alheio à tramitação normal do processo, deve ser autuado como apenso e não incorporado nos autos principais”. Ora, como apenso, a apreciação — por parte de um tribunal — se o arguido é mesmo natural de origem portuguesa só será feita mais tarde. Isso terá um efeito: mesmo que um tribunal confirme a nacionalidade originária, Schmidt já estará no Brasil nas mãos das autoridades brasileiras e já não será devolvido.

Excerto de despacho do Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de janeiro de 2018

O juiz decidiu então que “impõe-se o cumprimento e execução da decisão”. Nesta última decisão — já não passível de qualquer recurso — o juiz do Tribunal da Relação refere o facto de o arguido ter alegado que pediu um “outro parecer” à ministra da Justiça, Francisca Van Dunem. Isto porque já havia um primeiro parecer — como é habitual nestes casos, de 16 de abril de 2016 — com a ministra a dar parecer positivo ao início do processo de extradição.

No parecer, a ministra entendeu que após passar a decisão para o poder judicial — o que aconteceu em abril de 2016 — o poder executivo deixa de ter qualquer interferência no processo. O Ministério da Justiça considera que “a partir daquele momento todas as decisões passaram a estar sob controlo jurisdicional e sujeitas às garantias legais e constitucionais”. Ora, para o auditor jurídico da governante, Francisco José Pinto dos Santos, “cabe às autoridades judiciais, e só a estas, apreciar no momento da tomada de decisão sobre a extradição, a qualidade de nacional”.

O ministério considera assim que, “iniciada a fase judicial está vedado ao ministro da Justiça intervir na mesma, direta ou indiretamente, inexistindo qualquer suporte legal para a reabertura da fase administrativa para eventual ponderação dos “factos novos” alegados por Raul Schmidt Fellipe Junior. Daí que “o facto resultante da atribuição da nacionalidade portuguesa originária a Raul Schmidt Fellipe Junior, averbada em 9 de janeiro de 2018 na sequência de novo quadro legal emergentes Lei Orgânicas n.º 9/2015, apenas  pode ser valorado pelo tribunal”.

As próprias autoridades brasileiras já deram como certa a ida de Raul Schmidt. O procurador da Lava Jato, Diogo Castor de Mattos, disse em declarações à Globo, a 29 de janeiro de 2018, que a extradição já tinha sido decidida em última instância, mas que só seria julgado por atos praticados antes de dezembro de 2011, quando conseguiu a nacionalidade portuguesa. Ou seja: continua a prevalecer a reciprocidade e Raul Schmidt será julgado no Brasil como natural português mas não como nacional de origem.

Detido duas vezes em Portugal

Raul Schmidt não foi detido apenas em março de 2016. Nessa altura, apanhado pela PJ no âmbito de um mandado de detenção internacional, ficou em prisão preventiva, mas o processo de extradição não se resolveu nos 60 dias seguintes — o prazo máximo para a prisão preventiva nestes casos. E o arguido acabou por ser libertado. Em fevereiro 2018, quase dois anos depois, acabou por ser alvo de novo mandado de detenção depois de não ter cumprido as apresentações periódicas a que estava obrigado e de a polícia o ter perdido de vista da casa onde cumpria Termo de Identidade e Residência. Acabaria detido no dia 4 desse mês, no Sardoal.

A defesa alega que o arguido não fugiu nem desobedeceu às medidas de coação e interpôs um pedido de “habeas corpus”, alegando que esta detenção foi ilegal. Esse pedido será apreciado ainda esta quarta-feira. Caso seja rejeitado, a partir daí pode dar-se início à extradição para o Brasil.

Entre Portugal e Brasil há um histórico de vários casos de extradição em que, por serem nacionais de origem, ou suspeitos (ou condenados) conseguiram escapar à extradição. O Brasil não entregou a Portugal o padre Frederico (que tinha sido condenado por homicídio) e a ex-autarca Fátima Felgueiras (que era suspeita de corrupção no caso do Saco Azul). E, por seu turno, Portugal não entregou às autoridades brasileiras Duarte Lima, para ser julgado pelo assassinato de Rosalina Ribeiro. Isto porque Portugal não extradita nacionais de origem, porque o Brasil também não o faz. É o tal princípio da reciprocidade.