O Governo recusou total ou parcialmente seis dos sete pedidos de reforço de meios para o combate aos incêndios, apresentados pela Autoridade Nacional de Proteção Civil entre março e outubro do ano passado. De acordo com o relatório da Comissão Técnica Independente sobre o fogo de 15 de outubro, entregue esta terça-feira ao presidente da Assembleia da República, apenas uma proposta para reforço do dispositivo, na véspera do maior incêndio da Europa em 2017, teria sido aprovada pelo executivo.

De acordo com o documento elaborado por um conjunto de 12 especialistas de várias áreas, e coordenado por João Guerreiro, a 27 de setembro, cerca de duas semanas antes do incêndio que matou 48 pessoas, a Autoridade Nacional de Proteção Civil pediu à tutela que autorizasse um reforço de meios entre os dias 1 a 15 de outubro. Mas, das 105 equipas de combate ao fogo solicitadas, o Governo apenas autorizou 50, menos de metade.

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Pouco antes, a 8 de setembro, uma proposta para o reforço de “200 horas de voo suplementares para duas parelhas de aviões anfíbios médios” não colheu a validação do Ministério da Administração Interna. O pedido foi recusado.

Também um pedido de “reforço de 40 operacionais” da Força Especial de Bombeiros foi recusada. Tal como o pedido para o “reforço de uma parelha de aviões anfíbios médios”, de março de 2017, e o pedido de “reforço de quatro meios aéreos ligeiros”, apresentada em julho. Tanto uma como a outra foram recusados por falta de “fundamento legal”, de acordo com o relato obtido pela Comissão Técnica Independente.

Um outro pedido, desta vez para a “locação de quatro aviões anfíbios médios”, precisamente para o período crítico em que o centro e norte do país seriam varridos por vários incêndios, entre 13 e 31 de outubro, mereceu a mesma resposta.

Da lista apresentada no relatório do grupo de especialistas, apenas um pedido, feito a 9 de outubro, teria merecido a luz verde da tutela. Pedia-se naquele momento um “reforço do dispositivo na fase Delta” entre os dias 10 e 31 de outubro. De acordo com o relatório, o executivo acedeu. Mas, segundo o jornal Público, o reforço de 164 equipas de combate a incêndios, com um acréscimo de 70 horas de voo para os aviões anfíbios médios que operava no território nacional e um prolongamento de oito helicópteros médios até ao final daquele mês de outubro, ficou a meio. O reforço aéreo não foi aprovado de imediato.

Dos sete pedidos de reforço de meios apresentados pela ANPC, apenas o “reforço do dispositivo na fase Delta para o período de 10 a 31 de outubro”, de 9 de outubro, terá sido “aprovado”. Foram validadas 164 equipas e 70 horas de voo para aviões anfíbios médios, além de ter sido prolongada a locação de oito helicópteros médios até ao final de outubro.

A postura do executivo mudou depois do “pior dia do ano” em matéria de incêndios florestais. Para novembro, foram autorizados meios que tinham sido negados até então.

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Dispositivo ficou “muito aquém das necessidades”

O cenário traçado pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) para aquele sábado, 14 de outubro, era claro: “O IPMA emitiu avisos amarelos para tempo quente nos distritos de Porto, Aveiro, Coimbra e Leiria para o dia 14 de outubro e até às 21 horas do dia 15 de outubro, e para precipitação a partir das 3 horas do dia 16 de outubro”, destaca o relatório. Ainda assim, o “pré-posicionamento” de meios para aquele período, já em fase de desmobilização, “ficou muito aquém das necessidades”.

O relatório reconhece que a meio do mês de outubro, e “em plena fase Delta”, a dispositivo de combate aos fogos estava em rota de desmobilização.

Os meios disponíveis e a capacidade instalada é francamente menor do que a prevista e planeada para a fase Charlie”, reconhecem os autores do documento.

Ainda assim, considera “estranho” que os meios pré-posicionados, face ao cenário que se antecipava, passassem por um Grupo de Ataque Ampliado (GRUATA) da Força Especial de Bombeiros (FEB), na base de apoio logístico de Mangualde, e quatro grupos de reforço de incêndio florestal” em Ponte Lima, Vila Real, Chaves e Albergaria-a-Velha. Era, ao olhos dos autores do relatório, um “pré-posicionamento que ficou muito aquém das necessidades”.

Na sua investigação, os especialistas ouviram autarcas, empresários, responsáveis da Proteção Civil e 51 comandantes de corpos de bombeiros de 40 concelhos afetados pelos incêndios. Questionados sobre o pré-posicionamento de meios ao nível distrital, os comandantes operacionais distritais consideraram que “seria muito difícil” ter conseguido essa ação preventiva, “atendendo que já estávamos numa fase de descontinuidade do dispositivo (em regra seria o último dia), e depois de um ano que até ali já tinha sido muito difícil, as condições para pré-posicionar meios foram muito marginais”.

A Comissão Técnica Independente assinala o facto de, depois dos incêndios de meados de outubro,  entre 1 e 15 de novembro (já na fase ECHO), ter sido possível obter uma autorização para o “prolongamento do dispositivo terrestre, bem como o prolongamento da locação de seis aviões anfíbios médios, dois aviões anfíbios pesados, 10 helicópteros médios e 11 ligeiros” — o que não tinha acontecido com os pedidos dirigidos ao período mais crítico dos fogos, duas semanas antes.

E assinalam o comportamento da população, que, com a memória fresca dos acontecimentos de junho, poderá ter evitado mais fatalidades. Os técnicos constaram “alguns comportamentos provocados pelo ‘efeito Pedrógão’, ou seja, muitos locais foram antecipadamente abandonados, por meios próprios, sem ordem prévia de evacuação”. Foi o que se passou em Castelo de Paiva, Oliveira do Hospital, Oliveira de Frades e Loriga-Seia, entre outros locais, em que as populações se deslocaram até aos quartéis de bombeiros para se protegerem das chamas.

Além disso, “a circunstância de ser domingo permitiu ainda em alguns aglomerados populacionais haver os tradicionais eventos familiares, ou visitas de família, o que permitiu que em muitas circunstâncias, tivessem sido os civis, que se encontravam nesses territórios, a fazerem, sem qualquer apoio, a defesa perimétrica dos seus núcleos populacionais”, refere o relatório.

Proteção Civil suavizou alerta

Os dirigentes da Autoridade Nacional de Proteção Civil não ficam isentos de responsabilidade. No relatório entregue no Parlamento, o conjunto de especialistas aponta o dedo à forma como a previsão metereológica, com referências à precipitação que se faria sentir na segunda-feira logo após o fim-de-semana que se revelaria fatídico, deu sinais contraditórios à população e contribui para o surgimento de mais focos de incêndio.

“Na descrição da situação meteorológica do referido comunidade técnico operacional, existem três pontos que justificam de forma clara a passagem ao estado de alerta especial nível vermelho“, começa por referir o relatório. “Contudo, um quarto ponto refere que, ‘na madrugada/manhã de segunda-feira, é previsível a ocorrência de precipitação com uma progressão do litoral para o interior, sendo pontualmente forte no período da tarde'”.

Esta referência à chuva esperada para domingo terá suavizado a mensagem junto da população.

Sabe-se, pela experiência anterior, que nas vésperas do aviso das primeiras chuvas existem determinadas práticas que concorrem para o aumento do número de ignições, seja para renovação de pastagens, seja por outra motivação”, o que leva os especialistas a considerar “desnecessária” a inclusão dessa referência no tal comunicado.

O grupo, que investigou os dois grandes incêndios de 2017, que fizeram 114 vítimas mortais, considera que “toda a ênfase deveria ser colocada nas variáveis associadas à probabilidade de ocorrência de incêndios florestais”.