Atravessar parte da Sibéria num evento organizado por ingleses, em pleno conflito diplomático com a Rússia, que até meteu expulsão de embaixadores, foi apenas o menor dos problemas com que nos deparámos nesta incursão pelo país de Putin, líder de um Estado que, segundo os britânicos, depois da distribuição – gratuita, é claro – de polónio radioactivo aos seus ex-espiões – especializou-se agora em brindá-los com gás de nervos, uma tal molécula conhecida como A-230, que faz parecer os tenebroso gases Sarin e VX uma brincadeira de crianças.

Esta incursão pela Sibéria, a bordo do novo Mazda CX-5, foi “apenas” a mais recente das Epic Drives organizadas pela equipa da Mazda no Reino Unido, que em Setembro de 2017 tinha visitado os Açores, mais especificamente a ilha de São Miguel, que adorou e classificou como o Havai da Europa, cujo vídeo pode ver aqui:

E estes ingleses não brincam em serviço, pois esta viagem pela região Este da Rússia, a poucos quilómetros da Mongólia, teve tudo de épico. Mas, por mais impressionante que fosse o cenário e imponentes as dificuldades, o objectivo era, acima de tudo, colocar à prova a capacidade do CX-5 em lidar com condições traiçoeiras e o gelo mais duro do mundo, por consequência o mais escorregadio, ele que foi concebido como um SUV civilizado, mesmo luxuoso.

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Qual foi o desafio?

O objectivo consistiu em ligar Ulan-Ude a Irkutsk, uma distância de 460 km que facilmente demora mais de sete horas a percorrer. Acha lenta a média de 65 km/h? Pois… Bem-vindo à Sibéria, onde há mais câmaras de controlo de velocidade do que buracos no asfalto! E há muitos, pois cinco meses de gelo e pouco investimento na manutenção a isso obrigam, o que associado às estradas escorregadias e pejadas de camiões, explica a média reduzida. E se está a pensar argumentar com a polícia local, se for apanhado em excesso de velocidade, é bom que domine bem a língua russa e a escrita em cirílico, pois de contrário o confronto de ideias vai terminar num ápice. E se ousar tratar os polícias lá como muitos automobilistas tratam por cá, é melhor pensar duas vezes, uma vez que as décadas de ditadura não os habituaram ao diálogo, nem a nada que roce a falta de respeito pela autoridade.

Mas a Epic Drive não seguiu a trajecto normal, tendo antes atalhado através do lago Baikal, num percurso extra de 70 km que permitia poupar quase 200. Deixámos para trás Ulan-Ude, cidade de 400 mil habitantes (a terceira maior da Sibéria), que foi criada pelos cossacos para servir de entreposto comercial com os vizinhos mongóis e chineses. Se nos arredores da cidade as construções impressionam pela pobreza e fragilidade, sobretudo tendo em conta que o recorde de temperatura mais baixa no longo Inverno ronda 54ºC negativos, para no Verão superar os 40ºC, em Julho, os quilómetros seguintes foram percorridos rodeados apenas pela natureza e pela linha de caminho-de-ferro dos tempos dos czares, que serve a mítica Transiberiana, que a atravessa a Rússia da Europa ao Pacífico, em Vladivostok.

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Com o piso em melhor estado próximo de Ulan-Ude e substancialmente pior a partir daí, rapidamente ficámos satisfeitos por viajarmos de SUV, pois as crateras surgiam quando menos se esperava, o que colocava à prova a robustez e o curso das suspensões, bem como a resistência dos pneus.

Então e as dificuldades?

Surgiram assim que chegámos ao lago. Primeiro, chamar àquilo lago é quase uma ofensa. É certo que é o maior e o mais antigo do mundo, com mais de 25 milhões de anos, a ponto de conter cerca de 20% das reservas de água doce (não congeladas) do planeta, o que dá uma ideia da sua dimensão. São 80 km de largura, mas uns impressionantes 630 km de comprimento, o que equivale à distância em linha recta entre Faro e Melgaço, ou seja, de uma ponta à outra de Portugal.

Mas ser enorme é apenas um detalhe. O que o distingue é o facto de ser formado por um vale originado por uma falha tectónica particularmente activa, que o torna cada vez mais largo, à média de 2 cm por ano. O facto de ser muito profundo (1.642 metros) torna a sua água à superfície muito pura, uma vez que os depósitos e minerais tendem a acomodar-se no fundo, onde os especialistas afirmam existir uma camada com 7 km de altura de sedimentos. Ora, quanto mais pura é a água, mais duro e transparente é o gelo, o que tem coisas boas e outras más. Começando por estas últimas, os pneus Nokian iriam ter que se esmerar para garantir um mínimo de aderência, o que só conseguiriam graças aos pregos com que estavam equipados – a única coisa que nos assegurava um mínimo de controlo sobre o exercício de patinagem artística que nos esperava. Entre as características positivas, destaque para o gelo transparente, que mesmo quando tinha mais de um metro de espessura, continuava a permitir ver a água do Baikal. Veja aqui como é o fundo do lago russo:

Mas há outros problemas que tornam o lago russo particularmente traiçoeiro, e a principal tem a ver com a falha tectónica de que falámos atrás. À sua conta, a actividade sísmica supera a centena de tremores de terra por ano, e se apenas pouco mais de uma dezena é sentida pela população dos arredores, quase todos os sismos aplicam no gelo uma pressão brutal, quebrando-o e provocando um ruído indescritível, originando falhas que o atravessam de uma margem à outra. Estas falhas, umas maiores do que outras, tanto podem ‘atascar’ um veículo, prendendo-lhe um dos eixos – e vimos alguns dos CX-5 do grupo terem de ser rebocados dessa desconfortável situação –, como podem ser um pouco maiores e engoli-lo por completo. Parece-lhe um exagero? Pergunte a Viktor Yanukovych, o presidente deposto da Ucrânia, hoje refugiado na Rússia, cujo filho foi apanhado por uma destas ratoeiras e foi parar ao fundo do lago, com o VW Transporter que conduzia, levando consigo mais cinco amigos.

E o CX-5 esteve à altura?

Em relação ao Mazda, foram várias as ocasiões em fiquei muito satisfeito pelo facto de o veículo em causa não ser meu. Imagine-se a circular a 50 km/h, numa coluna liderada por um veículo tipo militar anfíbio – espertos, estes russos… –, com seis rodas motrizes tipo balão, para reduzir a pressão sobre o gelo e evitar que quebre. Sempre atrás do líder, ecoavam na nossa cabeça as últimas dicas, desde conduzir sem cintos de segurança, tendo-nos sido dada uma peça para evitar que o avisador sonoro apitasse constantemente, passando pelo conselho de nunca estarmos a menos de 25 metros do carro da frente, pois duas toneladas em cima de uma placa de gelo é uma coisa, enquanto 4.000 kg poderia já dar direito a um mergulho só de ida…

Este é outro dos perigos do Baikal: os vulcões libertam gases quentes, que sobem à superfície, derretendo o gelo, tornando-o mais fino e quase transparente. Visto da Estação Espacial Internacional, o círculo que só é visível de cima, tem 4 km de diâmetro

Nas zonas em que a neve foi varrida pelo vento, Baikal oferecia-nos o tal gelo transparente que o caracteriza, que é também escuro, o que não contribuía em nada para tranquilizar o nosso estado de espírito. E as ordens eram claras, obrigando-nos a circular sempre em fila indiana, com o carro de trás a passar exactamente em cima das marcas do da frente, pois era isto que nos evitaria cair numa fissura do gelo, ou entrar a direito por um dos buracos que as focas fazem para respirar à superfície, cujo diâmetro pode oscilar entre o meio metro e o metro e meio, ou seja, entre apanhar um susto ou ir ao banho. Ao que parece, este é também um dos poucos lagos de água doce com focas (só há três no mundo), animais que vieram do oceano Ártico através dos rios, provavelmente na brincadeira em cima de blocos de gelo. Como estão no topo da pirâmide alimentar – dentro de água, pois fora dela é o urso pardo quem manda e há mais de 13.000, hibernados nesta altura do ano –, estes simpáticos animais, mais de 2.500 exemplares endémicos do Baikal, têm uma vida santa e ainda criam umas ratoeiras para os poucos que ousam ali andar de automóvel.

Mas depois de percorrer os primeiros quilómetros bem-comportado, dos 70 que iríamos cumprir até chegar à outra margem, resolvi testar a aderência dos Nokian com pregos, fazendo uns slides que o Mazda descrevia com mestria e sem necessitar de grande ajuda para controlar. Tudo porque o sistema inteligente adapta-se ao tipo de piso e de condução, colocando a potência onde ela é necessária para manter o carro equilibrado. Mas o tal vento que varria a neve e descobria o gelo, criava também montículos de neve fofa, que o carro destruía à passagem. Mas nem sempre, pois por vezes sob o tufo de neve estava um pedaço de gelo partido e de novo solidificado, que atirava o carro pelo ar, como se tivéssemos subido um passeio a 50 km/h, e de frente.

Também a passagem das fissuras na superfície do lago revelou ser um compromisso complicado, pois só se conhece o espaço entre os blocos de gelo depois de atravessarmos. Se optarmos por uma toada muito cuidadosa, poupamos o carro mas podemos ficar presos Se formos mais lestos, tendo sempre presente que o carro pertencia à Mazda Rússia, o CX-5 podia levar mais uma traulitada, mas pelo menos não ficávamos presos na racha sem saber se seria daquela vez que iríamos ao banho. Na dúvida, nunca poupámos o carro, mas a verdade é que a água gélida desaconselhava a outra opção. Conheça aqui melhor os segredos do lago:

Então e depois?

De regresso a terra firme, parámos para pernoitar em Listvyanka, uma pequena vila nas margens do lago e na imponente nascente do único rio que sai de Baikal, apesar de o lago ser alimentado por mais de três centenas de rios. No dia seguinte um saltinho até Irkutsk, cidade 50% maior do que Ulan-Ude e consideravelmente mais sofisticada, cuja população duplicou por volta de 1870, quando o czar Nicolau I resolveu para ali exilar nobres, oficiais e artistas moscovitas que tinham ousado contestar as suas políticas. Como resultado, Irkutsk passou a figurar no mapa cultural russo, existindo ainda inúmeros exemplos desses tempos em que nobreza, com posses, habitou a cidade.

Quase tão importante quanto isso, o CX-5 chegou intacto – alturas houve em que tememos o pior –, sem ruídos parasitas, sem estar desalinhado e pronto para outra Epic Drive, seja ela onde for. Deixámo-lo no aeroporto, onde embarcámos via Moscovo rumo a Lisboa, numa também épica viagem de 12 horas, mais umas quantas de ligação, onde depois de três dias a conviver com os siberianos, ficámos maravilhados com o tratamento de que fomos alvo pelo pessoal de bordo da Aeroflot. Quem os viu e quem os vê.

No final da Epic Drice, houve quem se despedisse do lago Baikal mergulhando a cabeça numa água que tinha tanto de pura como de gelada