A atriz e encenadora Mónica Calle ficou a saber há dias que o grupo de teatro que dirige desde 1992, Casa Conveniente, não terá direito à verba de cerca de 206 mil euros anuais a que se candidatou junto da Direção-Geral das Artes (DGArtes). E isso quer dizer, admitiu Mónica Calle, em entrevista ao Observador, que “não é possível continuar”. “Se a situação não for resolvida, podemos ter de fechar portas”, afirmou.

É mais um exemplo da forte contestação em torno do concurso que a DGartes lançou em outubro do ano passado – um Novo Modelo de Apoio às Artes, com regras desenhadas pelo secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, e pela diretora-geral das Artes Paula Varanda (afastada no início do mês pelo ministro da Cultura, por “perda de confiança política”).

A estrutura dirigida por Mónica Calle concorreu ao programa de financiamento de Apoio Sustentado quadrienal 2018/2021, mas não foi considerada elegível, pelo que não transitou para a fase em que poderia disputar uma fatia do montante global de 83,04 milhões de euros que o Governo disponibilizou para estes concursos.

A Casa Conveniente recorreu da decisão, em sede de audiência de interessados, mas soube a 15 de maio que o júri da DGartes mantinha o parecer inicial. O grupo vai intentar novo recurso, mas já pondera interromper a atividade.

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“Houve 48 estruturas que recorreram, muitas delas por contestarem os montantes que lhes foram atribuídos. No nosso caso, nem isso, porque fomos considerados não elegíveis. Um dos itens em análise é o plano de gestão e deram-nos 10 pontos quando teríamos de ter pelo menos 12”, explicou Mónica Calle. “O plano de gestão inclui o grau de dependência das estruturas em relação ao financiamento da DGArtes. Os candidatos têm de ter 20% de receitas de outras fontes. O júri reconheceu que a nível artístico o nosso grau de dependência é de 73%, ou seja, dentro das regras, mas não aceitou que o grau de dependência fosse de 100% nas nossas outras áreas de atuação: o trabalho comunitário que fazemos de formação de crianças na Zona J [bairro de Chelas, em Lisboa] e de formação de reclusos em Vale de Judeus.”

A Casa Conveniente apresentará dentro de dias um recurso hierárquico, última hipótese formal de contestação. E entretanto pediu uma reunião com representantes da DGArtes e da Secretaria de Estado da Cultura, que foi aceite, mas ainda não tem data marcada.

Outras quatro estruturas artísticas em situação idêntica – Primeiros Sintomas, Karnart, Cão Solteiro e Teatro Experimental do Porto – também querem reunir-se com a tutela, segundo Mónica Calle.

“Estamos em contacto uns com os outros e pedimos reuniões individuais, mas não descartamos ações conjuntas”, disse. “O secretário de Estado da Cultura sabe qual é a consequência do não financiamento, sabe que se estas estruturas não receberem qualquer apoio vão ter de suspender o trabalho ou fechar portas.”

A associação Liberdade Provisória, o Teatro A Bruxa, a Seiva Trupe e o Festival Internacional de Marionetas do Porto são outras das entidades que a DGArtes deixou sem subsídio, noticiou a agência Lusa.

Mónica Calle na peça “The Swimming Pool Party”, em fevereiro no Teatro São Luiz, em Lisboa  (© Estelle Valente)

Mónica Calle entende que o Novo Modelo de Apoio “está armadilhado e burocratizado” e “não se adequa à realidade das estruturas”. A encenadora sugere que a insuficiência de verbas, mesmo depois de vários reforços anunciados nas últimas semanas pelo Governo, levou o júri da DGArtes a excluir concorrentes que noutras circunstâncias seriam elegíveis.

A encenadora sublinhou que independentemente da situação concreta da Casa Conveniente “toda a classe e todas as estruturas estão em situações muito graves”, mesmo as que foram financiadas.

“Não houve concursos no ano passado e já estamos em maio, as companhias continuaram a trabalhar com dívidas, sem pagar ordenados ou com produções interrompidas e, ao mesmo tempo, a pagar IVA e contribuições para a Segurança Social”, pormenorizou. “Neste primeiro semestre, apresentámos produções no São Luiz [“The Swiming Pool Party“] e no Teatro Nacional D. Maria II [ “Ensaio para uma Cartografia”], graças à boa vontade destas instituições. Mas ponderei muito seriamente cancelar o espetáculo no Teatro Nacional, porque não me parecia eticamente razoável estar a pagar às pessoas o que paguei. Nem vou dizer quanto ganhou a equipa, porque tenho vergonha.”

Um comunicado da Casa Conveniente, hoje distribuído à imprensa, diz ser “caricato” que em outubro do ano a diretora artística tenha recebido o “Prémio Isabel Barreno – Mulheres Criadoras” (da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género e do Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais) e que agora, através do concurso da DGArtes, a companhia seja excluída dos Apoios Sustentados. “O primeiro-ministro e o ministro da Cultura não podem de modo algum considerar o assunto encerrado”, lê-se.

A Casa Conveniente foi fundada em Lisboa em 1992, no Cais do Sodré, e tornou-se notada no ano seguinte com o espetáculo “A Virgem Doida”, a partir de textos de Rimbaud com tradução de Mário Cesariny. Constituiu-se formalmente há 18 anos e mantém atividade ininterrupta, apesar de uma fase de indefinição entre 2012 e 2014, ano em que a sede passou para a Zona J.

Se no início o grupo criou em torno de “grandes textos da dramaturgia mundial”, ao longo do tempo foi procurando “um discurso artístico e estético a partir das periferias”, nas palavras de Mónica Calle, passando a dedicar-se também à “vertente social e de inclusão”,  porque “o trabalho artístico deve ser transformador dos territórios em que se insere”.