Os dados podem ser animadores ou preocupantes, consoante a análise de cada um. Comecemos pelas boas notícias: em 2017, a indústria musical norte-americana (a maior do mundo, tida como exemplo de referência para muitas indústrias do setor de países periféricos) gerou perto de 43 mil milhões de dólares, isto é, perto de 37 mil milhões de euros em receitas. É o valor mais alto desde 2006. Outra boa nova: a percentagem de receitas que ficam no bolso dos artistas aumentou consideravelmente nos últimos anos. Para gerar um fluxo tão grande, porém, os artistas foram obrigados no ano passado a esforços suplementares e ficaram apenas com 12% do bolo gerado, em grande parte, pela sua música. Apesar da percentagem ser superior aos 7% que se registavam em 2000, é ainda considerada diminuta por músicos e representantes do setor.

Os dados foram revelados num relatório do banco de investimento Citigroup, agora tornado público. Intitulado “Putting the band back together: remastering the world of music” e escrito por seis técnicos do banco de norte-americano — Jason B. Bazinet, Mark May, Kota Ezawa, Thomas A. Singlehurst, Jim Suva e Alicia Yap –, o relatório apresenta dados da Associação da Indústria Discográfica dos EUA (RIAA). Algumas conclusões são esperadas, outras são surpreendentes. O que o estudo retrata é uma indústria que, ao contrário das piores previsões, parece não estar a definhar. As notícias da morte da sustentabilidade financeira do negócio musical parecem manifestamente exageradas, apesar do surgimento da internet e da quebra de vendas de CDs. A última representou um decréscimo de mil milhões de dólares (perto de 860 mil euros) de receitas, entre 2000 e 2017.

Um novo paradigma que o relatório do Citigroup confirma, e que já vinha sendo assumido por músicos, editoras e promotores de concertos, é que as atuações ao vivo tornaram-se fonte de rendimento essencial para a sobrevivência dos artistas. Enquanto as vendas físicas de música continuam em declínio, os gastos das pessoas em “concertos, festivais e serviços de subscrição”, isto é, plataformas de streaming como a Apple Music e o Spotify, estão “em máximos históricos”. As despesas em atuações ao vivo estão mesmo a “aumentar brutalmente”, indica o relatório, e foram o motor do crescimento das receitas nesta indústria, que estagnou na primeira década dos anos 2000.

A digressão “U2 360º” durou três anos, 2009 a 2011, e foi a maior digressão deste século até ao momento. Eis os impressionantes números: 110 concertos, 66 mil pessoas por espetáculo (em média), mais de 7 milhões de fãs e receitas de mais de 6 milhões de euros por concerto. (LLUIS GENE/AFP/Getty Images)

Uma crítica que se ouve habitualmente às novas formas de consumir música é que os serviços de subscrição mais populares remuneram mal os autores das canções e dos discos. É o caso da Apple Music, que no final de 2017 tinha 36 milhões de subscritores pagos nos EUA (mais 80% do que no final do ano anterior), e do Spotify, que passou de 34 milhões de subscritores no início de 2016 para 51 milhões no final de 2017. O relatório apresenta ainda dados sobre o Youtube. Não se sabe ao certo o número de utilizadores desta plataforma, que por ser gratuita e não tão centrada na música não pode ser comparada ao Spotify e Apple Music, mas os autores do relatório estimam que possa superar os mil milhões. O lucro do Youtube poderá ascender a 16 mil milhões anuais e a competição da marca no mundo dos serviços de subscrição pagos promete crescer com o Youtube Music, serviço que é aposta recente.

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Embora o valor seja variável, já que o número de intermediários que beneficiam do bolo das audições digitais varia consoante a estrutura que rodeia cada músico, um especialista ouvido pelo Citigroup, Kevin Brown, estima que “mesmo um artista inteiramente independente recebe apenas 15 a 20 mil dólares (entre 13 a 17 mil euros, aproximadamente) por cada um milhão de plays [cliques]” nas suas canções.

Brown, que é presidente de uma empresa que trabalha na criação de comunidades digitais (pagas) que liguem músicos a fãs, a GigRev, fala mesmo no caso de uma “grande banda dos anos 1980” (não especifica) que assinou recentemente com a editora Universal, soma dez milhões de cliques digitais por mês e retira daí apenas 1.500 dólares mensais, que têm ainda de ser distribuídos pelos elementos da banda e compositores da canção.

O rapper canadiano Drake acaba de fazer história: esta semana, tornou-se o primeiro músico a superar os 50 mil milhões de “streams” (audições digitais) de um álbum, no caso o seu mais recente disco, “Scorpion”. (FERDY DAMMAN/EPA)

O grande número de intermediários neste negócio é o principal fator apontado pelo relatório para justificar a pouca rentabilidade dos músicos, no contexto norte-americano. Os intermediários são aliás enumerados na sua totalidade: pontos de venda, “apps”, editoras discográficas, publishers musicais (responsáveis por garantir que não existem violações de direitos de autor), empresas de emissão de bilhetes, donos e gestores de salas de concertos, promotores de concertos, técnicos pessoais, agentes, empresas de recolha de royalties (direitos de autor) e até fabrincates de automóveis (devido à rádio). Todos ganham com esta indústria, todos beneficiam da totalidade do bolo gerado.

Na maior parte dos setores do entretenimento, o artista fica com a fatia de leão dos lucros. Mas, porque a indústria da música tem tantos intermediários e porque o consumo de músico está tão fragmentado por várias plataformas, o artista fica com uma parte muito pequena das receitas agregadas. Nos últimos 20 anos, a percentagem de receitas da indústria musical que vai para os artistas tem oscilado entre os 7% e os 12%”, lê-se.

Editoras em dificuldades nos EUA

Se os serviços de streaming remuneram mal os artistas e se as vendas de discos e singles continuam em declínio, como é que se justifica o crescimento das receitas na indústria musical e o aumento da percentagem do bolo a que os artistas têm direito? A resposta é simples: concertos. O relatório confirma isso mesmo: “O avolumar do crescimento [de receitas] não é impulsionado pelo crescimento nos serviços de subscrição de música, mas sim pelo fortalecimento do negócio dos concertos”. Acresce que as grandes editoras estão “em grande medida excluídas da economia desse negócio”, pelo que as receitas das atuações ao vivo são “particularmente úteis aos artistas”.

A relação dos artistas com editoras discográficas nos EUA é outro dos pontos focados pelo relatório do Citigroup. Para os autores do estudo, “mesmo que os artistas gostem da ideia de evitar editoras, em última análise encontrar uma editora musical é benéfico para as suas finanças”. Exceções no mercado norte-americano há algumas, destacando-se a do jovem Chance the Rapper, que não só não tem editora como tem gravado sucessivamente mixtapes sem edição física, várias das quais disponibilizadas gratuitamente na internet. Chance the Rapper foi mesmo o primeiro galardoado com um prémio Grammy a não ter qualquer disco ou single à venda em lojas de música. É o exemplo máximo do novo paradigma da indústria musical americana (e de muitas outras): vender discos não é o mais importante, chegar aos ouvidos do público e levá-lo a pagar bilhetes é decisivo.

Apesar das nuvens que ainda existem sobre o futuro de uma indústria em que “cada vez mais as pessoas optam por alugar música, em vez de a comprar”, os autores do relatório acreditam na melhoria da condição dos artistas, que “deverão capturar uma fatia maior das receitas deste ecossistema. Isso será impulsionado pelas mudanças já a ocorrer nas receitas dos concertos, área em que as editoras desempenham um pequeno papel“.