Quando foi publicado em França, na Primavera de 1969, Papillon, de Henri Charrière, transformou-se num colossal sucesso, levado às nuvens pela crítica, com vendas na casa dos 1,5 milhões de cópias só no mercado gaulês. Seguiram-se traduções em todo o mundo, incluindo Portugal, e até uma versão em banda desenhada, que o “Diário de Notícias” publicou na altura em tiras diárias.

O livro conta a história real de Charrière (de alcunha Papillon, por causa de uma borboleta que tinha tatuada no peito), um ladrão de cofres que em 1931 foi erradamente acusado de assassínio e condenado a trabalhos forçados na Guiana Francesa. Acompanhado por Louis Dega, um falsário de que se tornou amigo e guarda-costas, Charrière tentou várias evasões, passou alguns anos na solitária como castigo e conseguiu finalmente fugir da Ilha do Diabo em 1945, para onde tinha sido transferido.

[Veja um documentário sobre Henri Charrière]

https://youtu.be/LPAIRlwZlIk

Acabou por ir dar à Venezuela, onde se instalou, casou, criou negócios e tornou cidadão, transformando-se numa figura conhecida no país. Em 1970, um ano depois da edição de “Papillon”, Charrière foi perdoado pelo governo francês, por razões humanitárias mas também devido ao fenómeno editorial em que o livro se havia tornado e à onda de simpatia pública pelo seu então já idoso autor. Uma continuação, “Banco” sairia em 1973. Entretanto, o jornalista e escritor Gérard de Villiers (criador do agente secreto Malko Linge) publicou uma investigação, “Papillon Epinglé”, onde contestava a veracidade da obra e afirmava que esta tinha um apenas núcleo que correspondia à realidade, sendo o resto inventado pelo autor, apropriado de presos que tinham privado com ele e “levantado” das memórias de outro condenado, René Belbenoit, publicadas nos anos 30.

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[Veja imagem dos degredados dos anos 30]

Henri Charrière defendeu-se dizendo que tinha contado a verdade, salvo alguns “lapsos de memória”, que havia proposto o livro ao seu editor, Robert Laffont, para ser publicado como “um romance narrativo” e que tinha sido este a decidir publicá-lo como uma memória autobiográfica. Por esta altura, já Hollywood, sempre atenta, tinha comprado os direitos de adaptação ao cinema e em 1973 estreou-se “Papillon”, escrito por Dalton Trumbo (um dos “Dez de Hollywood”) e Lorenzo Semple Jr, realizado por Franklin J. Schaffner (oscarizado pouco antes por “Patton”), rodado em boa parte na Venezuela e no Havai e com duas grandes estrelas: Steve McQueen no papel de Papillon e Dustin Hoffman no de Dega. Uma escorreita e bem executada produção de indústria, “Papillon” fez boa bilheteira, foi bem recebido pela crítica e teve como consultor o próprio Charrière, que morreria de cancro alguns meses antes da estreia, não o chegando a ver acabado.

[Veja o “trailer” do filme original de 1973]

Quase 50 anos depois da edição do livro, e 45 após a estreia do “Papillon” de Franklin J. Schaffner, surge um “remake”, já não sob a égide de um grande estúdio americano – esses estão muito ocupados a fazer filmes de super-heróis em linha de montagem -, mas uma co-produção independente entre países europeus e os EUA. É um filme redundante, inútil e claramente menor quando cotejado com o original, e à pergunta “Porquê, para quê, para quem?” só ocorre uma resposta: é uma tentativa de apresentar e “vender” a aventura – real ou muito ficcionada – de Henri Charrière a uma nova geração de espectadores, despertando ao mesmo tempo a curiosidade dos que conhecem o filme original. Mas os primeiros estão absorvidos com os filmes de super-heróis; e estes já devem ter ficado satisfeitos com o “Papillon” de 1973, como deixam adivinhar os resultados de bilheteira.

[Veja o “trailer” do novo “Papillon”]

O filme vai “picar” ao argumento original de Dalton Trumbo e Lorenzo Semple Jr, e também buscar elementos ao segundo livro de Charrière, “Banco”, mas omite alguns dos melhores momentos da primeira versão, caso da passagem pela colónia de leprosos ou o contacto com os índios, e aqui e ali, mete “buchas” na história. A realização do dinamarquês Michael Noer é compostinha, mas a grande debilidade do filme são os dois actores principais, Charlie Hunnam e Rami Malek, sem pinga do ”star power” e da autoridade dramática dos intérpretes originais. Hunnam procura claramente imitar Steve McQueen, da pose e da presença física ao discurso, e Malek soa como Dustin Hoffman, mas fica-se por aí em termos de comparação. Eram precisos actores mais conhecidos, mais rodados e com mais carisma do que estes dois.

[Veja a entrevista com os dois actores principais]

Esta nova incarnação de “Papillon” perde assim em toda a linha quando posta ao lado da realização original , a começar no aparato de produção e a acabar nos actores secundários (a fita de 1973 tinha “característicos” de forte presença como Anthony Zerbe, Victor Jory ou Vic Tayback num brutal sargento do campo de trabalhos forçados), passando pela fluência narrativa. É um verbo de encher cinematográfico, uma insipidez como entretenimento e uma fraca ideia comercial. Teria sido melhor se tivessem ficado quietos, deixando-nos com a boa memória do primeiro filme.