Descrevem-no como criador radical e provocador, o mais controverso da Europa, e ele não nega, mas numa conversa recente com Observador procurou transmitir uma imagem mais ou menos moderada. Ou será que o retrato que costumam fazer dele é manifestamente exagerado?

Nascido há 42 anos em Berna, na Suíça, o encenador Milo Rau estudou sociologia e trabalhou como jornalista, tendo chegado ao teatro em 2003, quando iniciou colaboração com companhias alemãs e belgas. Tornou-se notado. Já fez espetáculos sobre o julgamento de Ceausescu, o abuso sexual de menores, o genocídio no Ruanda, o jihadismo, a guerra no Congo. Ao telefone, a partir da cidade belga de Gante, onde desde há um ano dirige o principal teatro da cidade, o Nederlands Toneel Gent (conhecido como NTGent), disse-se “muito contente com o impacto que hoje se consegue através de uma obra de arte”. “As pessoas encaram as obras de arte com seriedade, envolvem-se e reagem. Isso é magnífico.”

Os portugueses terão oportunidade de conferir. Depois de ter estado entre nós em 2017, com “Five Easy Pieces” (precisamente sobre o pedófilo belga Marc Dutroux), regressa com “Os 120 Dias de Sodoma”, em sessões a 7 e 8 de março no grande auditório do Rivoli, uma das salas do Teatro Municipal do Porto. Mais à frente, de 1 a 3 de abril, apresentará no Cinema Ideal, em Lisboa, a peça-filme-livro “The Congo Tribunal”, no âmbito da bienal de arte contemporânea BoCA.

Com duração de duas horas e cenas escatológicas, sexuais e violentas, “Os 120 Dias de Sodoma” é um bom exemplo do trabalho de Milo Rau, um “teatro da violência e do terror”, como disse no início do ano o diretor do Teatro Municipal do Porto, Tiago Guedes, ao apresentar à imprensa a programação deste ano. É também uma obra sobre voyeurismo, aborto, violência, ternura e solidariedade, explicou agora Milo Rau ao Observador.

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O encenador trabalhou com vários atores portadores de trissomia 21 (©Toni Suter)

A peça teve estreia absoluta em fevereiro de 2017, na Schauspielhaus, conhecida sala de Zurique, e entretanto passou por uma dezena cidades. Alguns intérpretes são portadores de trissomia 21, ou síndrome de Down, o que resulta de uma colaboração com a companhia suíça Theater Hora. O facto de protagonizarem cenas intensas valeu ao criador reações extremas e críticas de exploração da deficiência.

Milo Rau sublinhou nesta entrevista que o espetáculo convoca diretamente o público que está na sala e leva-o a questionar o próprio papel de espectador. Será que se deve ver tudo o que se passa em cena sem reagir? A interrogação está latente nas outras duas peças que com esta compõem uma trilogia: “Five Easy Pieces” e “The Repetition”.

Óbvia e assumida adaptação da obra homónima do Marquês de Sade, mas também do filme de Pasolini nele inspirado, “Salò ou os 120 dias de Sodoma”, o espetáculo é “cheio de ternura” e isso “supera toda a transgressão”, disse Milo Rau. De um ponto de vista político, destacou que a ação se situa na Suíça, “um país onde um sistema fascista funciona sob a capa da normalidade”, classificou.

“Ao ser convidado a trabalhar com um grupo de atores com deficiência, e enquanto desenvolvia o projeto, soube da existência de rastreios pré-natais na Suíça, que permitem aos pais saber se os filhos terão alguma deficiência. Ora, 99% das pessoas receiam viver com pessoas deficientes e por isso há muitas mulheres que decidem abortar depois de fazerem estes diagnósticos. Os atores que trabalham comigo, e que já ganharam prémios de representação, são a última geração de pessoas com deficiência, estamos a assistir ao fim das pessoas com trissomia 21, deixarão de nascer na Suíça e noutros países”, sustentou o encenador. “Não sou contra o aborto, e não quero fazer julgamentos morais, porque não sei o que faria se estivesse nesta situação, mas penso que deveríamos pensar no paradoxo. Ou seja, a peça é uma metáfora do estilo de vida ocidental.”

Em algumas cidades, “Os 120 Dias de Sodoma” gerou reações acesas, com acusações de que o discurso do encenador punha em causa direitos individuais das mulheres, ao que ele respondeu que “quando o aborto se torna eutanásia, segregação e normalização dos humanos temos de o repensar”.

Quanto às acusações de exploração, explicou que os críticos que viram a peça nunca se referiram a ela nesses termos, apenas os jornalistas que escreveram artigos de divulgação, e considerou até que “os atores não deficientes é que são muitas vezes explorados, porque precisam de assumir certos compromissos e fazer certas cedências para poderem continuar a trabalhar”. “Se a realidade é provocadora, a arte deve igualmente provocar ou, pelo menos, deve permitir debater assuntos que de outra forma a sociedade não quer debater”, sublinhou.

[vídeo de promoção de “Os 120 Dias de Sodoma”, de Milo Rau]

“O meu trabalho é poético”

De resto, a provocação e o escândalo são apenas uma parte do trabalho de Milo Rau, “parte importante, sem dúvida”, notou. Nisso se inclui o “Manifesto Gante”, que lançou no ano passado e que recupera o tipo de posicionamento ideológico que realizadores como Lars von Trier apresentaram na década de 90, com o manifesto cinematográfico “Dogma 95”. Neste caso, trata-se de uma carta de princípios para as produções do NTGent, segundo a qual é proibida a adaptação à letra de clássicos do teatro, por exemplo. Inclui-se ainda a estrutura de produção que criou há mais de uma década, International Institute of Political Murder, que defende “uma nova forma de arte política”.

Mas no pensamento de Milo Rau há mais do que apenas assomos de controvérsia. “O meu trabalho é bastante poético e complexo, tem momentos de reflexão, é um trabalho humanista que pode gerar reações mais afetivas e conduzir-nos a um certo universo de pureza”, defendeu.

No limite, não quer usar o teatro apenas para atingir o sublime ou o divino, como por vezes acontece, procura também “intervir diretamente na sociedade”. “Por um lado, quero representar a transgressão, o lado negro da vida, mas também me interessa a transcendência. O teatro é uma arte de repetição e é necessário traduzir o real em metáforas, porque um ator só pode morrer uma vez a sério, até lá, todas as mortes que tiver em palco são metáforas.”

Criador fértil, mais interessado em andar na rua, conversar com pessoas e dar entrevistas do que em estar sentado em casa a escrever, Milo Rau disse que tem aprendido com alguns dos que o criticam, “aqueles que fazem artigos inteligentes” e que o levam “a aprender coisas novas” sobre o próprio trabalho.