Título: “Vamos Descobrir a Biblioteca Nacional”
Autora: Luísa Ducla Soares
Ilustradora: Mariana Rio
Design: Pato Lógico
Editora: Imprensa Nacional
Páginas: 88
Preço: 15 €

O trabalho dum editor — de qualquer editor — pode e deve ser escrutinado enquanto tal, isto é, enquanto ofício envolvendo escolha de autores e títulos e o modo ou arte de os tornar “papéis pintados”. Aí revelam-se preferências pessoais ou de tendência, mas também e não poucas vezes todo um pacto de silenciamentos, hostilidades e exclusões que ajudam bastante a perceber o carácter dos protagonistas, o palco e os bastidores duma época. Esse escrutínio crítico é, portanto, também uma forma de memória cultural, todavia ainda muito negligenciada no nosso país, onde é reduzidíssimo o número de obras que foram ou são dedicadas ao mundo editorial e livreiro, e depois a atenção que estas recebem, ou pura e simplesmente não recebem. Esse défice também traduz a desatenção ou baixa estima que à figura dinâmica do editor dedicam historiadores e sociólogos culturais ou a política pública de arquivos e os arquivistas literários, um problema antigo e sem solução à vista que bastante nos há-de fazer amargar um dia, quando se perder a oportunidade de registo de testemunhos vívidos de monta — mas quem se ralaria com isso, a começar pelo Ministério da Cultura e o seu inútil Instituto do Livro? Uma recentemente anunciada série de biografias de “grandes figuras da cultura portuguesa” não inclui um único editor no lote dos escolhidos, e isso é bem significativo do estado destas coisas.

Um depoimento memorialístico como o de Serafim Ferreira, agora mesmo reabilitado e contextualizado com grande mérito por Pedro Piedade Marques (Olhar de Editor, ed. revista e aumentada, Montag, Fevereiro de 2019, 210 pp.), o pioneiro Edição e Editores: O Mundo do Livro em Portugal, 1940-1970 de Nuno Medeiros (Imprensa de Ciências Sociais, 2010, 332 pp.), o admirável & etc, uma Editora no Subterrâneo (Letra Livre, 2013, 229 pp.), ou os ainda muitos frescos de tinta O Livro no Portugal Contemporâneo também de Nuno Medeiros (Le Monde Diplomatique, Dezembro de 2018), Democracia do Livro em Portugal. Transições, Protagonistas e Evolução Sociocultural de Rui Beja (Âncora, Março de 2019, 248 pp.), são praticamente tudo o que temos, e sendo, todos eles, documentos válidos, ficam muito aquém do que precisa de ser feito e ao nível em que precisa de ser feito — algo que, aliás, nunca seria almejado pelas três ou quatro entrevistas apressadas a editores e ao jeito de monografias laudatórias, que a agência Booktailors a dado momento decidiu fazer com o fito de uma aproximação estritamente clientelar…

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Vem isto um pouco a pretexto da denúncia feita por João Pedro George, na Sábado online do passado dia 1 de Abril (e que continua sem réplicas ou desenvolvimentos), do que parece ser um deplorável e muito imprudente favorecimento nepótico do editor da Imprensa Nacional a seu tio, o sinuoso António Mega Ferreira: sem dúvida, uma mancha negra que, a ter consequências, pode interromper um trabalho todavia digno de boa nota — porventura ainda pouco ou mal avaliado em toda a sua extensão —, atendendo desde logo ao que foi, e sobretudo não foi, todo o sucessivo histórico da editora do Estado desde o já muito longínquo consulado do saudoso Vasco Graça Moura, e diante do qual a acção de Duarte Azinheira representa, inequivocamente, um muito considerável passo em frente. E um dos seus maiores méritos foi precisamente a busca da colaboração de designers e ilustradores de primeira linha, capazes de refrescar e actualizar as produções da casa, com o vigor artístico e o prestígio já internacional que lhes estão associados (algo que, de resto, em diferentes ocasiões já sublinhei neste jornal, a respeito, por exemplo, dum roteiro lisboeta de José de Almada Negreiros, do catálogo duma exposição histórica na Casa do Design de Matosinhos ou de um prodigioso livrinho sobre arte popular). E no mesmo movimento, parece-me estar a abrir o ambiente oficinal, tecnicamente evoluído mas de resistente tradicionalismo estético, aos exigentes desafios experimentais de designers novos, como tão magnificamente ficou demonstrado no álbum “Imprimere”. Arte e processo nos 250 anos da Imprensa Nacional, de Rúben Dias e Sofia Meira.

Ora, o presente livro sobre a Biblioteca Nacional — onde, assinale-se, a IN abriu uma livraria em Agosto do ano passado — cumpre perfeitamente esse hábil e profícuo conjugar de talentos de escritor, ilustrador e designer, desta feita em benefício e sucesso duma obra útil ao conhecimento ou reconhecimento duma instituição patrimonial da maior importância por “leitores de palmo e meio”, com tudo o que isso comporta de tentativa de construção duma consciência cultural inclusiva. Luísa Ducla Soares, de 79 anos, é uma autora de reconhecidos méritos e créditos neste exigente género literário, e os empáticos desenhos da jovem ilustradora e designer Mariana Rio — integrando a excelência duma geração ímpar — já receberam uma mão cheia de distinções, inclusive em Bolonha, evereste da mostra internacional dessas realizações pictóricas, em fulgurante ascensão qualitativa, do digital ao artesanal. Além disso, o facto de Ducla Soares ter sido durante muitos anos funcionária da própria Biblioteca, facilitou-lhe sobremaneira a tarefa de apresentar a instituição — e a sua história verdadeira, em traços gerais, naturalmente — a um público habitualmente seduzido pela fantasia da imaginação literária tout court, e com “pouca paciência para longas explicações” (p. 21).

A narrativa consiste numa visita guiada a dois adolescentes, Joana e João, de 12 anos, na companhia do primeiro bibliotecário-mor da Real Biblioteca Pública da Corte, o famoso António Ribeiro dos Santos (por sinal, saído do seu retrato na Sala do Conselho da própria biblioteca; pp. 68-69), e de “um professor japonês”, certamente um dos investigadores de todo o mundo que ali vêm trabalhar. Passa pelo Terreiro do Paço, de 1796 a 1837, e pelo convento de São Francisco, desta data até 1969 e ao edifício projectado por Porfírio Pardal Monteiro no Campo Grande, a que foi acrescentada uma segunda torre em 2008-11. A um “percurso do livro”, da desinfectação à catalogação, da encadernação ao restauro, segue-se um “percurso do leitor”, do serviço de referência e inscrição como leitor às diferentes salas de leitura, incluindo a de reservados e as de música, cartografia e iconografia (e a sala de leitura para deficientes visuais).

É toda uma pequena pedagogia dirigida a supostos futuros utilizadores, a que não faltam algumas curiosidades sobre esse património acumulado de séculos, desde códices medievais iluminados e respectivos bestiários, aos primeiros incunábulos, à cartografia dos descobrimentos, ao arquivo de cultura portuguesa, com os papéis de alguns escritores, o livro maior e o livro menor (1,69 m e 5 mm, respectivamente). “A guia não quis deixar de frisar que, por muito boa que seja uma biblioteca, ela tem de evoluir, adaptar-se aos novos tempos, às novas necessidades” (p. 24), no entanto, nada é dito ou esclarecido sobre como práticas contemporâneas de leitura e actuais suportes digitais estão a ser integrados na patrimonização cultural — de que a BNP é vértice —, ou como a própria digitalização documental e seu acesso à distância, tornando-a inclusiva para todos e para todo o território, está a ser ou vai ser uma prioridade institucional.

Menos ainda, e podia ter sido feita essa essencial pedagogia — a pretexto, por exemplo, do “período de ouro” (p. 18) que consistiu o consulado do Grupo da Biblioteca, com Jaime Cortesão, Raul Proença e outros, e da exibição pública feita no convento de São Francisco de uma enorme quantidade de velhos livros degradados à espera de meios de restauro —, que sobre os vindouros recai sempre a árdua tarefa de conservar heranças recebidas e de vigiar governos e os meios por eles investidos na conservação e ampliação do património nacional, com a turbulência acrescida pela aceleração, proliferação e sobreposição de meios em uso, e que a Biblioteca Nacional tem em tudo isso — em teoria, e espera-se que também na prática — um papel fundamental. Algum alarme sobre a situação actual da instituição (que nada tem a ver com o oiro e azul da capa deste simpático livro), repetidamente sublinhada por alguns dos seus destacados leitores, parece-me hoje indissociável de qualquer discurso que a tenha como motivo e referência. E um livro destinado a jovens sobre uma instituição de gente envelhecida podia ter ido mais além no seduzi-los para o silencioso e maravilhoso mundo das bibliotecas, onde cada ofício ou função é um serviço nobre e gratificante. Mas talvez — como Luísa Ducla Soares saberá muito melhor do que eu — isso não se consiga num só dia, numa única visita guiada e num pequeno, sugestivo e muito bem feito livro, como este realmente é.