Cada um tem o seu cabeça de cartaz e no festival NOS Primavera Sound do Porto, que cada vez mais aposta na variedade das propostas musicais e dos públicos-alvo, isso é especialmente verdade. Não é difícil imaginar que o que se esperava da segunda noite de concertos do festival — esta última sexta-feira, 7 de junho — fosse o seguinte: primeiro, chegaria o cabeça de cartaz de um público novo que o NOS Primavera Sound atraiu este ano como nunca antes, J Balvin, o cantor de reggaeton a que muitos fãs antigos do festival, mais dados ao rock, torceram o nariz. Só depois viria o cabeça de cartaz dos ouvintes de música mais alternativa e menos “pop”, o londrino James Blake, de 30 anos. O plano, porém, não se concretizou exatamente assim — e não se concretizou graças a Assume Form, o quarto álbum do músico inglês, lançado no início deste ano.

[O público e o ambiente no segundo dia do NOS Primavera Sound:]

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As canções novas de James Blake, garantidamente um dos músicos mais vanguardistas da pop desta década, têm uma respiração diferente das anteriores, menos sombrias e mais dadas a algumas ingerências que lhe trouxeram novos ouvintes. Os duetos de Blake com Rosalía e com os rappers André 3000 (mais veterano) e Travis Scott (mais jovem) não faltaram no alinhamento do concerto do músico no Porto, nesta última sexta-feira, e a reação que provocaram provou que foram um passo certo rumo à sua consolidação como músico abrangente, já não só alternativo nem só de nicho.

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O concerto começou à 1h em ponto, a hora prevista. Discretos, James Blake e os seus dois acompanhamentos musicais em digressão — um baterista e um tipo capaz de tocar guitarra e mexer em maquinaria eletrónica — dirigiram-se para o palco pouco iluminado, a favorecer a intimidade e recato que a música do inglês, que vive tanto de som quanto de silêncio, precisa para ser verdadeiramente apreciada.

Perante luzes azuis que apontavam para o palco, James Blake sentou-se no teclado para o concerto e começou a atuação deste seu trio com “Assume Form”, a canção que deu título ao seu mais recente álbum . Nos grandes ecrãs laterais, a câmara focava Blake e a sua trupe só a preto e branco, num cenário visiual totalmente oposto à explosão de cores e luzes do concerto anterior, de J Balvin. A sobriedade foi o mote para o início de um belo concerto do pianista, compositor e produtor musical inglês, que após alguns percalços na adaptação aos grandes palcos ao ar livre parece ter encontrado uma fórmula visual e sonora para mostrar com eficiência as suas canções.

A nova aposta passa por, além de introduzir temas novos — dos quais os singles com Rosalía e Travis Scott são notoriamente os mais populares, estimulando imediatamente reações e cantoria na plateia mais jovem —, garantir que a qualidade do som está afinada e apostar forte na eletrónica. Quem ouvisse ao longe os momentos instrumentais do concerto diria que o Parque da Cidade do Porto tornara-se uma espécie de Gare do Porto, ou piso inferior do Lux Frágil lisboeta. No entanto, as batidas dançantes, secas e “quebradas” de James Blake servem-lhe sobretudo para cantar dores e sonhos, com uma boa dose de melancolia.

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Bem disposto, James Blake foi interagindo com o público, perguntando “como estão” e agradecendo a hospitalidade dos moradores desta “bela cidade”. Em alguns temas tocando sentado, noutros cantando de pé com expressão dramática — foi assim por exemplo em “Are You In Love” —, apresentou um alinhamento equilibrado e interpretado com eficiência, que juntava os singles novos a temas antigos já inevitáveis em concertos, como “Life Round Here”, “Voyeur”, “CMYK”, “Retrograde” e a sua versão de “The Limit To Your Love”, de Feist. Foi a sua melhor prestação num festival de verão que lhe ouvimos e foi a confirmação que, mesmo que o seu último disco se espraie por demasiadas estéticas sem se afirmar inteiramente em nenhuma, James Blake é hoje um músico mais completo do que era quando surpreendeu o mundo com o seu pós-dubstep melancólico.

Courtney Barnett, a grande embaixadora do rock no século XXI

Se James Blake levou já de madrugada o seu intimismo para uma linguagem mais afirmativa, tarefa exigida por um palco com a dimensão do principal do NOS Primavera Sound, Courtney Barnett teve apenas de ser igual a si própria, ao final da tarde e início de noite. Deu um grande concerto rock, um dos melhores dos últimos anos no festival, voltando a provar que não só é ainda melhor ao vivo do que em disco como que é hoje uma das melhores (a melhor?) embaixador de um género musical que em parte se resignou a ser marginal, distante do grande público.

Começando ao som de “Avant Gardener”, uma das suas melhores canções e um belo manual sobre o tédio que pode ser uma segunda-feira, a australiana arrancou para um concerto (com um baterista e um baixista, não precisava de mais) que teria deixado grandes figuras do rock já desaparecidas orgulhosas. Um exemplo? Kurt Cobain, a quem Courtney Barnett terá ido por certo buscar alguma inspiração na escrita (sobre temas mais familiares aos tipos que a ouvem do que reflexões sobre a vida luxuosa e excêntrica que o dinheiro proporciona de outros lados) e na melodia rock furibunda.

A voz não é perfeita mas isto é rock e a alma e entrega são mil vezes mais importantes que a afinação. Balbuciando palavras a uma velocidade espantosa, em alguns momentos, cantando com as entranhas  quando assim se impunha, disparou riffs e solos com a guitarra capaz de acordar os adormecidos e apresentou um alinhamento irrepreensível.

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Passou por “City Looks Pretty” e “Small Talk” ainda em modo aquecimento. Acelerou com “I’m Not Your Mother, I’m Not Your Bitch”. Disse ao público que se gostasse do coro de “Crippling Self Doubt and a General Lack of Self Confidence” podia cantar, instruindo-o para o efeito. Entrou em modo balada com a bela “Depreston”. Revisitou a exímia “Elevator Operator”, fazendo as delícias de todos os que tinham saudades de uma guitarra tocada com talento e garra (canhota, mão direita a segurar a guitarra, mão esquerda nas cordas, corpo inclinado para trás em alguns riffs mais fortes porque o rock também é isso). Tocou “History Eraser”, disse que ainda tinha um par de canções embora aquele final lhe tivesse soado a fim de concerto, mas “está tudo bem”. Está, porque a seguiur vieram “Nobody Really Cares If You Don’t Go to the Party” — há alguma reflexão mais quotidiana do que o grito “I wanna go out / but I wanna stay home”? — e “Pedestrian At Best”, que provocou saltos e só não originou mosh pit porque foi o concerto certo no festival certo, no dia e ano errados. Tareias rock destas, contudo, são sempre bem-vindas.

A festa afro-jazz dos Sons of Kemet que antecedeu a dança de Branko

Antes, tinham atuado os portugueses ProfJam e Surma a meio da tarde — a partir das 17h — e a compositora, guitarrista e cantora neozelandesa de folk Alduous Harding, que foi algo prejudicada pelo volume bem audível do concerto dos Jambinai a muitos metros de distância mas que não se atrapalhou, mostrando a sua música delicada, ora sonhadora ora fantasmagórica, perante muitos ouvintes sentados na relva, ainda a aproveitar o sol vespertino.

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Também ainda durante a tarde começou a exibição do novo jazz londrino, pelo sopro da saxofonista Nubya Garcia, talento emergente com residência em Londres que apresentou a sua música cósmica num trio que incluía contrabaixista e um baterista. Urge revê-la, com mais tempo e outro espaço, já no próximo mês de julho no Musicbox, em Lisboa e no gnration, em Braga.

Quem aproveitou o embalo de Nubya Garcia foram os Sons of Kemet, também eles inseridos nesse jazz que se vai fazendo por estes dias no Reino Unido, no caso destes uma big band com funk, balanço afro-tribal (garantido pelos quatro percussionistas) e palavras de libertação e reivindicação de um diseur-rapper-agitador de multidões. A dado momento o concerto dos Sons of Kemet já parecia um concerto-comício, na linhagem por exemplo de uns Art Ensemble of Chicago. A vertente concerto, felizmente, nunca foi descurada e ficou provado que a revolução também se pede fazendo festa — no local em que tocavam, que se encheu após o final do concerto de Courney Barnett no palco principal, quase ninguém estava quieto, tudo de braço no ar e pés e ancas a mexer.

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Movimento foi, já agora, coisa que também se viu na horda de gente que foi espreitar o que o português Branko (ou João Barbosa), produtor musical e DJ ex-Buraka Som Sistema, tinha para mostrar do seu mais recente álbum, intitulado Nosso. Mesmo com a concorrência dos Interpol, que atuaram à mesma hora, e ainda com uma convocatória à última hora para substituir Kali Uchis, Branko não se fez rogado e mostrou as canções novas — misturadas na sua mesa de som, com vídeos dos temas a sucederem-se no ecrã que estava mesmo atrás de si —, temas de amigos e “Na ri na” perante um volume de gente que foi crescendo até ao final.

A atuação do português aconteceu logo a seguir à de J Balvin e comprovou uma coisa: melhor ainda do que ser-se figura de destaque de uma cultura musical local que se quer afirmar ou já se afimrou além-fronteiras (como o reggaeton de J Balvin) é criar-se uma nova estética musical cruzando culturas, ritmos e sons que completam o puzzle sonoro do sítio de onde se vem. Mais importante ainda é fazê-lo como Branko o faz, com um bom gosto inatacável, de forma tão singular que, não sendo excessivamente acessível ou direta, lhe permite nuances que o tornam muito diferente dos seus pares. Este sábado, o NOS Primavera Sound termina com concertos de O Terno, Big Thief, Jorge Ben Jor, Rosalía e Erykah Badu, entre outros.

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