Artista, autora, modelo, designer de moda, socialite e herdeira de um império. Gloria Vanderbilt morreu ontem, aos 95 anos. A notícia foi avançada esta segunda-feira pelo seu filho Anderson Cooper, âncora do canal CNN. Citado pela The Hollywood Reporter, o jornalista partilha que a família só ficou a saber que Gloria sofria de um cancro no estômago em fase avançada tardiamente. “Apesar de ter passado os últimos anos sozinha, não estava só quando o fim chegou. Estava rodeada pela família e pelos amigos”, descreveu.
O nome de Vanderbilt ficará para sempre associado àquele que ficou conhecido como o “julgamento do século”. Foi na década de 30 do século passado, que a custódia (e fortuna) de Gloria foi acesamente disputada em tribunal pela sua mãe, Gloria Morgan Vanderbilt, e pela sua tia paterna, Gertrude Vanderbilt Whitney. “Pobre menina rica”, não demoraram os jornais a catalogar a criança mais famosa da América durante os Loucos Anos Vinte e a era da Grande Depressão, fora da esfera de Hollywood.
“Viveu a sua vida inteira sob os olhares do público”, descreveu esta segunda-feira na CNN o filho, num obituário em vídeo da mulher cujo trajeto intenso e tumultuoso fica ainda marcado pelos vários casamentos e aventuras no mundo dos negócios.
"I never knew we had the same giggle."@andersoncooper reminisces about the moments he shared with his mother, Gloria Vanderbilt.
The iconic American artist, designer, and heiress has died at the age of 95.https://t.co/vOMShEabdd pic.twitter.com/MoC7FatCI6
— Anderson Cooper 360° (@AC360) June 17, 2019
Com uma vida multifacetada, o seu apelido cola-se como uma luva ao universo da moda, perfumes, decoração e uma série de outros items com o seu nome. Os famosos blue jeans com os bolsos atrás, confecionados pela Mohan Murjani, ganharam um enorme empurrão à sua conta e poucos se poderão gabar de ter uma música feita por medida pelo ex-Beatle Paul McCartney, que em 1974 lançava “Mrs Vanderbilt”, baseada na vida de Gloria.
Nascida em Manhattan, Nova Iorque, em 20 de fevereiro de 1924, filha única do milionário Reginald Claypoole Vanderbilt, um magnata dos caminhos de ferro, e da segunda mulher deste, Gloria Morgan, a vida da herdeira mudou para sempre quando o pai morreu com uma cirrose. Gloria Vanderbilt tinha apenas 18 meses quando herdou 2.5 milhões de dólares (igual quantia foi parar às mãos da meia-irmã Cathleen). À luz do câmbio atual, falamos de qualquer coisa como 37 milhões de dólares, montante inacessível até atingir os 21 anos, e em parte delapidado pelos gastos maternos.
Nada que pague uma infância borrada pela veia de playboy e o excesso de álcool paternos e pela negligência de uma mãe adolescente que cedo trocou a filha pelas viagens e festas na Europa, não estranhando por isso que a sua guarda tenha sido garantida pela tia. Gloria cresceria numa mansão em Long Island rodeada e empregados, advogados e tutores, e a procurar na poesia, no cinema e outros escapes um conforto para todas as primeiras perdas.
A história do longo e escandaloso litígio foi contada em livro em 1980 por Barbara Goldsmith, e dois anos mais tarde a NBC transmitiria mesmo uma minissérie inspirada no caso, “Little Gloria… Happy at Last”, com Jennifer Dundas na pele de Gloria e seis nomeações aos Grammy.
Foi no teatro que Gloria, cujo sobrenome remonta a uma idade de ouro que ocupava o 820 da 5ª Avenida, com vista para o Central Park, vizinho de outras fortunas sonantes, como os Whitneys e os Astors, deu os primeiros passos, nos anos 50 e 60. Com apenas 17 anos, dava nas vistas na moda e figurava nas páginas da Harper’s Bazaar e namorou com as lentes de vários fotógrafos famosos, caso de Richard Avedon.
A estreia no mundo empresarial deu-se na década de 70, momento em que lançaria a sua famosa marca com a imagem de um cisne. Primeiro, uma linha de lenços, mais tarde as calças de ganga, reabilitados ao ponto de liderarem um verdadeiro império de estilo. Em 1979, o New York Times reportava o sucesso estrondoso dessa aliança entre os clássicos jeans, um uniforme por excelência dos anos 60, e um “grande nome”, o de Vanderbilt. Entre 1978 e 1984, a marca faturou mais de 17 milhões de dólares.
Já os anos 80 ficaram manchados pela fraude protagonizada pelos seus advogados, que deixaram em xeque o grupo Gloria Vanderbilt. Apesar de ter vencido o caso, que se arrastou longamente, Gloria devia milhões em impostos que nunca chegaram a ser pagos, um ajuste de contas que a obrigou a vender imobiliário em Southampton, Nova Iorque.
Mas nenhum património se equipara ao colorido e às zonas cinzentas da sua vida pessoal, que provavelmente mais atenção gerou ao longo dos anos. Vanderbilt casou-se por quatro vezes, divorciou-se três, teve quatro filhos e pelo caminho colecionou outras relações que deram brado, incluindo namoros com Frank Sinatra, Gordon Parks (até 2006), Marlon Brando, Howard Hughes e Roald Dahl.
Com apenas 17 anos trocou alianças com Pat DiCicco, produtor, agente, e cúmplice de mafiosos como Charles “Lucky” Luciano, uma história de abusos e violência que terminaria, sem descendência, ao fim de quatro anos. Escassas semanais depois, casou-se com o maestro Leopold Stokowski. Tiveram dois filhos e a união desfez-se em 1955. O realizador Sidney Lumet foi o seu terceiro marido. Casaram-se em 1956 e separaram-se em 1963, sem filhos. Pela quarta vez, em dezembro de 1963, Gloria disse “sim”, agora ao autor Wyatt Emory Cooper. O casamento durou 15 anos, até à morte de Cooper, em 1978, que não resistiu a uma cirurgia ao coração. Da relação nasceram dois filhos. Um deles, suicidou-se com apenas 23 anos. Carter Vanderbilt Cooper (1965–1988), o irmão de Anderson, lançou-se de um 14º andar do apartamento da família.
Amiga chegada da designer de moda Diane von Fürstenberg, viveu entre a tragédia e o faustoso universo da very important and beautiful people. Não por acaso, há quem insista que inspirou a célebre Holly Golightly de Truman Capote em “Breakfast at Tiffany’s” (“Boneca de Luxo”). Escreveu vários livros, incluindo poesia e mais do que uma título reservado às suas memórias. Para além de reconstituir a trágica morte do filho, Gloria perdoou a sua mãe em “Once Upon a Time” (1985). Em 2004, editava “It Seemed Important at the Time”, uma viagem pelos seus mediáticos casos com várias lendas de Hollywood.
Tenho que admitir que o amor da minha vida foi a minha mãe. Os homens são substitutos, digamos assim substitutos da minha querida”, escreveu Vanderbilt
Quando completou 90 anos, a sua extensa coleção de desenhos e pinturas foi exposta numa galeria em Nova Iorque. A riqueza da sua história pessoal e profissional, com especial enfoque na relação com um dos filhos (cuja revelação da homossexualidade Gloria veio a descobrir pela imprensa) mais conhecidos do grande público, ficou eternizada em “Nothing Left Unsaid” (“Nada por dizer”), um documentário com o selo da HBO que recupera o cisne e a sua lenda.