António Ramalho Eanes considera que a corrupção é uma “epidemia que grasse pela sociedade” portuguesa. Na opinião do antigo Presidente da República, que apresentou esta segunda-feira, na Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES), em Lisboa, a sua radiografia do país, isto deve-se, em parte, a uma “cultura de complacência”, mas também a um sistema partidário que escolheu o “encastelamento”, citou o Diário de Notícias.

“O problema da corrupção é muito complexo. Em Portugal, tem sido dito, e acho que com alguma razão, que a sociedade civil não é forte e autónoma perante o Estado e devia sê-lo. As empresas deviam ser autónomas perante o Estado. O Estado estabelece as regras, vê se são respeitadas e atua quando não são, mas não estabelece com as empresas determinadas relações que são relativamente perversas. As relações em que a empresa consegue determinadas benesses, favores, isso é um género de corrupção“, declarou o ex-Presidente durante a conferência, intitulada “Portugal — a crise e o futuro”.

Segundo Ramalho Eanes, “tudo isto se pode modificar e modifica com certeza” quando a sociedade civil for mais “autónoma” e “as empresas não tenham dificuldades burocráticas porque a nossa administração pública responde com prontidão, a justiça não demora quando houver uma fiscalização sobre aquilo que são os atos do parlamento”.

“Se olhar a história, há coisas que são muito difíceis. A alteração cultural numa sociedade é uma coisa muito difícil. Enchemos a boca com revoluções culturais, a russa, a chinesa. Quando implodiu o comunismo na União Soviética, o que a gente encontrou foi o homem russo. Não tinha sido criado um Homem novo, tal como prometiam. Não é fácil criar homens novos. Não é fácil modificar a cultura“, reconheceu já durante a fase de questões dos jornalistas, que marcaram presença em grande número no evento. Isso levou a que o antigo Presidente dissesse, em tom de brincadeira: “[A comunicação social] veio para ver se eu estou senil ou não”, citou também o Diário de Notícias.

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O antigo Presidente da República destacou, no entanto, que “houve alterações significativas”, pois “a sociedade civil era maioritariamente inculta, ignorante” e “hoje é maioritariamente culta, informada, cosmopolita”. “Começa a ter todas as condições para transformar o seu procedimento e relação com o poder político”, disse durante a sessão que se estendeu durante cerca de duas horas.

Durante a conferência, Ramalho Eanes criticou também as “listas fechadas” e o facto de os membros eleitos se transformarem em “delegados dos partidos”, em vez de serem representantes dos cidadãos. Segundo o ex-Presidente, as  forças políticas “do arco do poder têm colonizado a administração pública”, nas suas várias vertentes (central, local e setor empresarial do Estado), nomeadamente a Caixa Geral de Depósitos.

“Toda a gente sabe” que é “necessário modificar” o sistema eleitoral

O ex-Presidente defendeu ainda a necessidade de revisão do sistema eleitoral para resolver a crise da representação política, sem esquecer que a sociedade civil também deve ter maior nível de participação. “É verdade que esse hiato existe. Isso não é novidade nenhuma. Toda a gente sabe, toda a gente reconhece e é necessário modificar”, afirmou Ramalho Eanes, referindo-se à distância entre cidadãos e políticos, antes de citar, como exemplo, o estudo do antigo primeiro-ministro e atual secretário-geral da ONU, António Guterres, para reforma da metodologia das eleições, embora escusando-se a especificar soluções concretas para o problema.

“Uma das razões, como referi, será o sistema eleitoral. A outra, talvez não tenhamos feito aquilo que se impunha, que era socializar a política, isso poderia ter sido feito através da escola. E politizar a sociedade, sobretudo a jovem, também através da escola”, disse sobre o aumento da abstenção ou a opção pelos votos brancos e nulos. Para Ramalho Eanes, “a democracia tem muito menos democracia quanto menor for a participação dos cidadãos na escolha dos seus representantes, porque são os seus representantes que vão desenvolver o trabalho político em proveito da comunidade, do país, de todos e deles mesmos”.