A Casa das Histórias, em Cascais tem patente, a partir desta quinta-feira e até 17 de novembro, uma grande exposição das gravuras feitas por Paula Rego ao longo de 60 anos de trabalho. São cerca de duas centenas de obras, 28 das quais foram agora doadas pela artista ao museu, num gesto interpretado como o hastear da bandeira branca e o pronúncio de que há um futuro para a fixação do acervo da pintora em Portugal. Olhar Para Dentro/Looking In é a maior exposição de Paula Rego feita entre nós nos últimos anos e abre as portas para uma dimensão fundamental, mas pouco conhecida, da pintora: a gravura.

O jardim da Casa das Histórias recebe-nos com a suas sombras gentis e nada em redor nos prepara para a experiência física e psicológica violenta que se estende pelas paredes do museu, num preto e branco dramático onde rostos contorcidos, raparigas de olhares esquivos, animais  humanizados e humanos animalizados, monstros, crianças cruéis nos exigem que olhemos de frente para um mundo pouco simpático por tudo o que revela do nosso inconsciente coletivo e individual. Catarina Alfaro, curadora da mostra, diz que “não conhecer as gravuras de Paula Rego é desconhecer a alma da obra da artista” e “lamenta” que muita gente considere que só a pintura valha a pena ver e considere que “a gravura é uma dimensão menor”do trabalho da pintora.

“Na realidade, o desenho em papel e o desenho em chapa de cobre ou zinco acompanharam sempre o trabalho da pintora e neles pode ver-se o impulso criativo vindo do inconsciente para a mão, tal como uma criança”, explica a curadora.

Catarina Alfaro conseguiu reunir para esta exibição um conjunto de séries e histórias tão fabulosas como sombrias como as Nursery Rhymes/lengalengas infantis da Inglaterra medieval, a série Sem Título sobre o aborto, a que fez sobre o romance Jane Eyre de Charlote Brontë, contos populares portugueses ou, a mais recente, Mutilação Genital Feminina, sobre o ritual tenebroso que persiste em todo o mundo até na Europa. Cada uma delas vale uma visita pois a sua riqueza pictórica, narrativa, simbólica supera a pintura e maneja um conjunto de detalhes de subtilezas, de latências que só a escala de pretos, cinzentos, brancos infinitos ou ocres deixa ver.

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Sereia afogando Wendy | Mermaid drowing Wendy, 1992 (fotografia de Carlos Pombo)

Como afirma Catarina Alfaro, “a utilização das diversas técnicas de gravura, da técnica da ponta seca a águas forte, águas tintas ou litografias, permite-lhe multiplicar as histórias em séries temáticas. As narrativas ganham desdobramentos e intersecções imagéticas com outras histórias, como memórias ou rememorações que povoam o imaginário da pintora”.

Essa mão que, na infância, parecia movida diretamente pelo inconsciente, tornou-se a mão que luta fisicamente com a chapa para nela representar o seu mundo interior que de tão nosso se torna, por vezes, insuportável de olhar. Depois de ter feito algumas gravuras ainda nos seus anos na Slade School of Fine Art, é só nos anos 80 que Paula Rego regressa a esta técnica. Usa-a para fazer desenhos preparatórios das pinturas, mas também como trabalhos autónomos e como meio de comunicar de outra forma e com outros públicos que não os habituais.

“A minha mãe é como uma estrela de cinema cheia de glamour”

As séries, que não vão além dos 50 exemplares de cada gravura, são os seus trabalhos mais profundamente políticos e aqueles onde melhor se pode ver a sua filiação no universo de Goya, Gustave Doré, James Enson. Essa assumida influência levou Paula Rego a emprestar “com relutância” duas gravuras do mestre espanhol que fazem parte da sua coleção pessoal para integrarem esta exposição. São duas imagens da série Caprichos (1797-1799) que nos demonstram como a gravura não é uma arte secundária em Paula Rego.

“Quando estou a desenhar na chapa da gravura, tem mais a ver com o que está na minha cabeça do que com o mundo cá fora. Quando começas a desenhar na chapa e mergulhas nela é um imenso alívio dar rédea solta à tua imaginação (…) se tens uma pequena chapa de gravura e estás a desenhar nela, o mundo que estás a criar vai da tua mão para a chapa: não é olhar para fora, é olhar para dentro, talvez seja de facto como escrever (…) é a imagem que estás a fazer que te diz o que está dentro de ti, e o que realmente sentes às vezes não é muito simpático. E no fim descobres quem és afinal.”

Estas palavras da artista deram a Catarina Alfaro o mote para a exposição Olhar para Dentro. “Aqui temos Paula Rego a olhar-nos de frente”, afirma a curadora.

A voz humana e inumana de Paula Rego

Como se fora um escritor ou uma menina travessa no quarto de brinquedos, Paula Rego já gravou no nosso imaginário coletivo uma galeria de personagens únicas que pertencem ao domínio da fábula, como a Mulher-cão, as meninas a brincar com o cão, os homens marioneta, as crianças solitárias, as bailarinas pesadas e tirânicas, O Macaco do Rabo Cortado, as Vivian Girls. Quase sempre a pintora parte de narrativas não para ilustrar mas para recontar e, nesse ato atávico de contar histórias acrescentando-lhes sempre qualquer elemento novo, Paula Rego redimensiona e reatualiza as narrativas, abre-lhes novos universos de sentido ou, como escreve o poeta João Miguel Fernandes Jorge, ela deixa ouvir a voz humana “no que ela tem de verdadeiramente mais humano: provavelmente o seu constante declínio, o seu crepúsculo, a sua terribilidade e o seu registo de um grave tom inumano.”*

Jovens Predadoras | Young Predators, 1987, Fotografia Carlos Pombo

Se o clima de terror, tensão, conflito e imprevisibilidade são intrínsecos aos rituais domésticos que PR gosta de encenar, nas gravuras, ao contrário da pintura, esses rituais deixam-se ver na sua face mais sacrificial, mais arcaica. Cada rosto que nos olha e para onde olhamos parece vindo do fundo dos tempos, cada corpo inevitavelmente manipulado e supliciado por formas de poder sombrias que tanto podem ser a religião (no caso série sobre a excisão feminina, ou sobre o conto do meninos perdidos) como políticos (no caso do aborto) como as hierarquias sociais (no caso da Menina com o Cão ou Jane Eyre).

Amando Bewick | Loving Bewick, 2001 (fotografia de Carlos Pombo)

Paula Rego com o seu universo infantil, inocente e perversamente cruel tornou-se ela própria uma personagem incontornável do nosso universo cultural. Ela pertence já àquela galeria de mulheres e homens inesquecíveis porque absolutamente singulares como Agustina, Adília Lopes, Luiz Pacheco, cuja personalidade é por si mesma geradora de novas histórias reais ou inventadas.

Com 84 anos e, segundo Alfaro, a dedicar-se agora a trabalhos escultóricos, Paula Rego não estará presente hoje na abertura da exposição. Estará sim o seu filho Nick Willing, que faz parte, com Salvato Teles de Menezes (presidente da Fundação D. Luís I) da comissão paritária, que gere, do ponto de vista programático, a Casa das Histórias Paula Rego. Mas o Observador sabe que em dezembro haverá uma nova exposição e a pintora prometeu estar presente.

Uma morada temporária para Michael Cunningham e a obra gráfica de Paula Rego: o que está a acontecer em Cascais

A par da exposição, está aberta a terceira edição da oficina de gravura. Entre ateliês, sessões abertas, visitas e um curso intensivo, as atividades dirigem-se ao público em geral e exploram diversas técnicas usadas por Paula Rego na criação da sua obra gráfica.

* “As Vozes Humanas na Obra de Paula Rego”, ensaio que faz parte do livro “Longe do Pintor da Linha Rubra”, 2017, ed. de Autor