As ruínas da igreja do convento do Carmo, construida no século XIV por D. Nuno Alvares Pereira e destruída no terramoto de 1755, serão a mais eloquente testemunha do inexorável fim que aguarda todas as cidades e todos os homens. Troia, Cartago, Lisboa, Berlim ou, mais recentemente, Damasco (Síria) lembram-nos que o chão que pisamos não é solido e que as catástrofes naturais ou humanas não deixam vencedores nem vencidos.

O simbolismo das ruínas pareceu ao encenador António Pires ideal para regressar aos textos clássicos e à forma “intemporal e crua” como falam da condição humana. As Troianas, de Eurípides, tragédia que narra, pela voz das  mulheres, a queda de Troia às mãos dos gregos,  é um dos mais importantes textos da nossa civilização e não deixa de ser lamentável que o nosso teatro se venha afastando dessas obras fundacionais para se perder em tantos textos menores. Luísa Costa Gomes assina esta nova tradução da peça a partir da tradução/dramaturgia inglesa de George Theodoridis, que se estreia esta quarta-feira, 31 de julho, e fica até 17 de agosto.

Maria Rueff mostra que a tragédia também é um território que pisa com segurança

Se não imaginamos cenário mais perfeito para os lamentos de Hécuba (Maria Rueff), Cassandra (Alexandra Sargento), Helena (Vera Moura) e Andromaca (Sandra Santos),  as quatro atrizes não desapontam ao encarnar mulheres que tiveram um passado glorioso e que agora vão ser levadas como escravas sexuais para um país estrangeiro que desprezam e temem. Mortos os filhos, desapossadas do seu reino e da sua identidade, expostas a todas as violências e sem deus ou justiça que as salve, resta-lhes encarar o destino com dignidade.

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Elas mostram que a grande tragédia é a dos vivos e não a dos mortos. E, sob as noites deste verão frio, até as gaivotas do Tejo, com o seu piar lúgubre, vêm sobrevoar esta Troia mítica, símbolo da devastação provocada pelas guerras e das mulheres como as suas vítimas. “Num mundo de Trumps, onde se pressente qualquer coisa terrível no ar, esta pareceu-me ser a peça ideal para encenar”, diz António Pires, do Teatro do Bairro, que todos os verões encena uma peça nas ruínas onde junta atores profissionais com os alunos finalistas da escola ACT.

Este ano, o convite para protagonizar o espetáculo foi feito a Maria Rueff porque o encenador acredita que “em geral os grandes atores de comédia são bons atores de tragédia. São os que conseguem tocar os extremos da vida e eu queria muito ver a Maria a fazer um papel destes, tinha a certeza que ela se sairia bem”.

E, da facto, a atriz que nos habituámos a ver no lado do riso mostra aqui que pode curvar-se ante o choro, falar para a terra e para os mortos, amortalhar todas as esperanças, mas ser também manipuladora, vingativa, sarcástica, justa, acusadora, estoica. Ao longo de 90 minutos e com vários momentos de monólogo, a rainha Hécuba de Rueff não é uma máquina de recitar texto, é um corpo sacrificado, pesado, vergado, derrotado e nem por um momento nos lembramos que aquele é o rosto feminino da comédia em Portugal.

“Este é um papel difícil que normalmente é desempenhado por atrizes mais velhas. Entre nós, a Hécuba mais marcante terá sido a de Eunice Muñoz, há coisas que temos que atravessar para que o nosso corpo possa falar delas, como é o caso da morte. Já me morreram pais e irmãos e essas experiências transformaram-me também como atriz”, confessa Rueff ao Observador, no final de um dos ensaios, com o vestido vermelho esfarrapado da sua personagem e umas botas Dr. Martens nos pés. Está extenuada e exultante enquanto diz que “este papel é o sonho de qualquer atriz” e que se “sentia pronta e desejosa” de fazer uma tragédia, o que não acontece por exemplo com o drama “é um registo meio termo que não sei se seria capaz de fazer”.

Alexandra Sargento é a sacerdotisa louca Cassandra filha de Hécuba. O coro das escravas é interpretado pelas alunas finalistas da escola de actores ACT

A voz dos vencidos

A versão da história mais comum e, de certa forma, mais atraente para os escritores, é a dos vencedores. Basta pensarmos em quantos filmes americanos sobre a II Guerra Mundial foram feitos, quantos deles vimos e quantos foram feitos pelos alemães e quantos deles vimos. E no entanto todos acreditamos que ouvir os dois lados da história é da mais elementar justiça. Não deixa de ser curioso, e ousado, que o grego Eurípides, no ano 415.a.C, tenha escrito uma peça em que dá a voz aos troianos e onde quase todas as personagens são mulheres. O tragediógrafo concorreu com ela ao troféu das Grandes Dionisíacas e ficou em segundo lugar. Como os deuses são caprichosos, a peça vencedora acabou por se perder  no tempo enquanto As Troianas continua a ser lida e representada quase dois mil e quinhentos anos depois. Por outro lado, como lembra Luísa Costa Gomes, os gregos não terão gostado de se ver representados como bárbaros.

A estrutura da peça é simples e António Pires quis acentuar esse despojamento com um cenário minimalista, quase sem adereços: “Queria fazer o teatro mais clássico possível onde o texto tivesse o papel principal. Queria que as palavras ressoassem e se impusessem e depois as ruínas do convento são o melhor cenário”, explica o encenador.

Em contraponto ao branco da pedra, os vestidos vermelhos das atrizes e do coro são a marca de sangue. Esta é uma história de mulheres, onde elas são as vítimas mas onde também são manipuladoras, sedutoras, sábias. O conhecimento era a única salvação conhecida no terrível mundo grego, que infelizmente muitos dos nossos autores gostam de pensar como “solar”, “branco”, “inefável”. Por isso, logo a abrir as palavras de Hécuba lembram-nos disso: “Aguenta a mudança da fortuna”, diz a si mesma. Este repto volta a fazê-lo a Andromaca que vê o filho pequeno, Astianacte, ser assassinado, para que não pudesse vingar o pai, Heitor. Sábia é também a louca Cassandra, filha de Hécuba, sacerdotisa do templo de Apolo que foi agora feita escrava por Agamémnon. Conhecedora do volúvel carácter dos deuses Cassandra profetiza o fim de todos os gregos, que a deusa Atena pediu ao deus Poseidon.

“As personagens femininas são arquétipos ainda hoje reconhecíveis: Hécuba, a Velha Rainha-Matriarca; Andrómaca, a Mulher Séria cuja seriedade é motivo da concupiscência masculina; Cassandra, a Louca-Delirante, possuída pelo deus, cuja virgindade sagrada é motivo da concupiscência masculina; Helena, a Bela Com Senão, Deusa e Hetaira, cuja beleza vivida é motivo… etc. E o coro das escravas, a quem não resta mais do que imaginar o futuro amo, e esperar que ao menos viva num país fértil e seja bom e feliz.” [Luísa Costa Gomes]

Nesta visão de Eurípides, os homens são não só irresponsáveis, cruéis, mas também tontos e fracos. Desde logo Poseidon (Hugo Mestre Amaro), que se deixa arrastar pelas palavras de Atena e depois Menelau que, apesar de traído por Helena, arrastou o seu povo para uma guerra para a recuperar, e agora, face ao discurso de Hécuba que lembra ser a bela Helena a razão de todos os males, promete levá-la de volta a Grécia para a matar — e sabemos que não o fará, porque não resistirá à sedução da espartana. As palavras acusatórias que Hécuba dirige à ardilosa Helena são um dos pontos altos da peça. O arauto Talíbio é a única personagem masculina que demonstra algum sentido de justiça e empatia.

Helena (Vera Moura) representa a mulher manipuladora, ardilosa e fútil que conduziu à guerra entre gregos e troianos

Esgotadas todas as esperanças numa vingança redentora e perante a cidade de Troia a ser devorada pelas chamas, Hécuba ordenas às pernas que caminhem para os barcos gregos aceitando, enfim, o seu destino. Ela corporiza não apenas o seu destino como também o da sua cidade, do seu país, de todas as cidades, de todos os países destruídos pela insensatez dos homens. Nesse sentido ontem como hoje ela serve para nos lembrar que toda a paz e toda a riqueza é passageira, que a guerra e a destruição de tudo o que ser ergueu, surgem num ápice e pelas mais fúteis razões.

“As Troianas” está em cena até 17 de Agosto nas ruínas da igreja do convento do Carmo, de segunda a sábado, pelas 21.30. A peça tem a duração de 90 minutos e deverá levar consigo um agasalho. Bilhete normal 16 euros.