Em 1977, uma mulher descrita como “dançarina exótica” entrou numa pequena loja de cosmética em São Francisco. O estabelecimento chamava-se The Face Place e havia sido inaugurado no ano anterior pelas irmãs Jean e Jane Ford. A stripper procurava uma coloração para os mamilos, um produto de textura leve, rápido e fácil de aplicar, que desse um aspeto saudável àquela parte do corpo. O pedido, apesar de invulgar, acabou por ser atendido. As duas irmãs ferveram pétalas de rosas e pigmento carmim criando uma solução avermelhada a que deram o nome Rose Tint. O produto permanece um sucesso de vendas até hoje. Mantendo a tonalidade, só o nome foi alterado para Benetint, uma leve solução para colorir os lábios, as maçãs do rosto e, enfim, quaisquer outras zonas do corpo a carecer de um pouco de cor.

A experimentação e o improviso fazem parte da história da Benefit, nome escolhido por Jean e Jane na hora de ver a pequena boutique de Mission District crescer e tornar-se uma cadeia de lojas, em 1990. Juntas, as irmãs Ford escreveram o mais improvável dos manuais de marketing — venderam maquilhagem através do humor, refutaram todas as teorias sobre a importância de um plano de negócio e ainda subverteram as leis da cosmética. Primeiro, uma boa gargalhada, só depois o estojo de maquilhagem.

Em 1976, Jane (à esquerda) e Jean Ford abriram a The Face Place, em São Francisco. Ainda na casa dos 20, as irmãs gémeas tinham chegado de Nova Iorque onde tentaram uma carreira como modelos © Imagem cedida pela Benefit

Em 1999, a Benefit é comprada pelo Grupo LVMH, o mesmo que detém a Sephora, a Make Up for Ever, a Fenty e a Guerlain, além de importantes marcas de moda como a Christian Dior, a Louis Vuitton e a Fendi. A pequena loja de São Francisco cresceu e chegou aos quatro cantos do mundo, incluindo Portugal, ao mesmo tempo que se foi apurando na sua área de especialidade. Atualmente, são quase 20 produtos desenvolvidos em exclusivo para as sobrancelhas. É também através delas que a marca alimenta a sua ação solidária. Todos os anos, durante o mês de maio, as receitas das depilações revertem para associações de cada país — o Bold is Beautiful Project nasceu em 2015, envolve hoje 21 países e já angariou mais de 15 milhões de euros.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Annie e Maggie Ford Danielson são as embaixadoras da marca (sem funções executivas), embora o elo que as liga à Benefit seja também familiar. A mãe foi uma das fundadoras e, juntamente com a irmã gémea, dirigiu a empresa até 2012, muito depois de esta ter sido comprada pelo grupo francês. Jean Ford, morreu em janeiro, aos 71 anos, vítima de cancro. Jane permanece retirada do negócio que construiu com a irmã. O legado das duas irmãs expande-se a olhos vistos, com cerca de 3.000 pontos de venda espalhados por mais de 45 países. Em 2020, assinalam-se os 30 anos do nome Benefit. O Observador falou com as herdeiras sobre a história, as ferramentas de marketing e o futuro da marca e da indústria.

Nos anos 70, São Francisco foi um palco central da libertação sexual feminina. A Jean e a Jane estavam lá. Como é que esses ideais se tornaram uma parte importante do ADN da Benefit?
Maggie: A Jean e a Jane nunca teriam criado o que criaram se não estivessem em São Francisco. Os anos 70 foram a década do amor livre, dos direitos das mulheres, da libertação sexual e da febre da disco. Foi publicado o livro “The Joy of Sex”, ao mesmo tempo que homens e mulheres usavam maquilhagem todas as noites quando saíam para dançar. Nessa altura, a Jean e a Jane viveram os melhores anos das suas vidas.
Annie: Diria que foi o ambiente que as rodeava que permitiu que tudo acontecesse. São Francisco era, e continua a ser, uma cidade construída sobre o pensamento livre e por gente sonhadora que desafia as regras, quer consideremos o que hoje é feito em Silicon Valley, quer estejamos a falar da Jean e da Jane na década de 70. Essa atitude e essa mentalidade deram origem à Benefit e isso não poderia ter acontecido em nenhuma outra cidade.

Começaram com uma loja chamada The Face Place, com uma abordagem simples e prática ao mundo da beleza. Porque é que isso foi tão importante naquela época?
Maggie: Naquela altura, a criatividade fluía livremente, a experimentação era encorajada, as mulheres sentiam-se empoderadas e acima de tudo… não havia regras. Essa foi a atmosfera perfeita para a Jean e a Jane criarem uma nova abordagem à beleza, dizendo adeus ao conceito tradicional de maquilhagem e aparecendo com novas ideias.
Annie: No fundo, elas só queriam formar uma comunidade, uma irmandade onde o foco estivesse nas gargalhadas e na diversão. Elas sempre acreditaram que a maquilhagem tinha de ser uma coisa fácil, descomplicada, que soluciona problemas e, acima de tudo, que faça as pessoas sentirem-se bem e não apenas que as deixe com bom aspeto.

Diriam que as irmãs Ford encontraram ali uma forma de empoderar as mulheres?
Maggie: Acho que terem criado uma marca de maquilhagem com o lema “rir é o melhor cosmético” foi um verdadeiro statement. Elas acreditavam que, quando uma mulher ri, fica mais bonita. Na realidade, isso não tem nada a ver com maquilhagem.
Annie: Nesse sentido, elas libertaram as mulheres dos conceitos tradicionais de beleza e de maquilhagem e vieram dizer que a felicidade e a alegria as faziam ficar bonitas. Não é a tua aparência, mas o que fazes. Essa ideia é extremamente moderna e empoderadora, sobretudo tendo em conta que elas a criaram há mais de 40 anos.

The Face Place, a primeira loja de maquilhagem de Jean e Jane Ford, durante os anos 80 © Imagem cedida pela Benefit

Como é que as descreveriam enquanto empreendedoras naquela época?
Annie: Não importa a década em que estás. Para se ser um empreendedor é preciso ter estômago, tenacidade, uma ética de trabalho incrível e muita automotivação. Elas tinham isso tudo. Costumavam dizer: “Nunca aceites um no como resposta, junta-lhe um w e transforma-o num now“. Simplesmente, elas não se acomodaram nem cederam à preguiça, pelos empregados, mas sobretudo por elas.
Maggie: Ao contrário da maioria dos empreendedores de agora, elas não tinham um grande plano de negócio quando começaram com a Benefit. Levavam um dia de cada vez, cresciam devagar e aprendiam pelo caminho. Diziam sempre que tens de confiar em ti, na tua intuição e no que vês à tua volta, que é isso que te guia — e não faças planos a longo prazo porque vai sempre aparecer algo que te vai apanhar desprevenido. Ter uma uma marca de beleza global nunca foi o objetivo delas, mas estiveram tão focadas no dia-a-dia, nas pessoas que tinham com elas e na tal mensagem de gargalhadas e diversão, que isso aconteceu naturalmente.

Esta base feminista continua a existir na Benefit?
Annie: Absolutamente! Somos uma marca muito feminina, mas o conceito do que é “feminino” muda e evolui constantemente. Um dos conceitos chave que orienta a comunicação na Benefit é a ideia de “arrojada e girly“. É a ideia de que podemos ser uma boss, uma babe e tudo o que fica no meio. Mais uma vez, é o que fazes, não o aspeto que tens.
Maggie: Tem muito mais a ver com a ideia de feminismo dos dias de hoje. A Jean e a Jane são mulheres confiantes, não convencionais, independentes e seguras de si. Elas próprias envolveram-se na construção da marca e há aspetos que continuam, hoje, a ser pertinentes nos produtos e na comunicação.

O mamilo da Rosie foi a primeira grande história contada pela Benefit. Desde essa altura, a relação entre os produtos e as histórias tem sido uma ferramenta de marketing. Continua a haver boas histórias para contar?
Annie: A Benefit foi a primeira marca a dar tanta importância ao aspeto exterior dos produtos de maquilhagem. Num mar de preto, branco e prateado, as nossas coisas são vivas e coloridas. Cada produto distingue-se pelo ar e pelo toque e isso tem um propósito.
Maggie: A nossa marca começou numa boutique, existe uma dimensão de lifestyle. As pessoas querem viver no mundo Benefit. Por isso, quando a marca começou a expandir-se para outros pontos de venda, a minha mãe e a minha tia perceberam que, para dar às pessoas a mesma experiência, tinham de pôr, em cada produto, a mesma energia que as pessoas sentiam quando entravam numa das nossas lojas. Foi aí que surgiu esse storytelling ligado ao design e ao marketing dos produtos. Todos têm uma vida, uma história por trás e proporcionam uma experiência diferente. Isso também faz com que as equipas de marketing tenham muito material com que trabalhar. Não nos limitamos a falar do tom ou da fórmula. Literalmente, criamos um mundo à volta do produto e isso torna-o envolvente e inesquecível.

Rose Tint, a primeira fórmula do best-seller Benetint, criada em 1977 © Imagem cedida pela Benefit

Em parte, as irmãs Ford conquistaram o mercado com essa visão prática e descomplicada da beleza e das suas rotinas. Há 40 anos, essa era uma mensagem nova, mas hoje vemo-la em todo o lado. Como que é que a Benefit se mantém especial?
Maggie: Quer na originalidade das embalagens, seja na experiência de loja, a Benefit está sempre lá para as suas miúdas. Isso não vai mudar por muito que cresçamos como marca. Tudo começou com as próprias Jean e Jane a dar as boas-vindas a quem entrava na loja de Mission District, em São Francisco. Não importava qual o problema que a cliente trazia, elas estivam lá para ajudar a resolvê-lo de forma rápida e simples.
Annie: Queremos, até hoje, ser aquela marca à qual as miúdas recorrem, seja na loja online ou numa boutique física. E é precisamente por não seguirmos tendências que mantemos essa ligação com as clientes. Elas estão muito bem informadas sobre as tendências de beleza atuais, mas veem-nos como a marca de confiança. Somos como aquelas calças de ganga que fazem o rabo ficar espetacular. Vão usá-las com vários tipos de camisas e com os sapatos que estão na moda, mas, no final, são essas calças de ganga que vão fazê-las sentir-se no seu melhor.

A Benefit sempre foi uma exceção na forma como, tradicionalmente, muitas marcas de beleza comunicam, mantendo-se longe de figuras públicas e de uma sexualização da figura feminina. Em vez disso, usam cartoons, montras cor-de-rosa e embalagens vintage.
Maggie: Acreditamos que o riso é o melhor cosmético. Não qualquer tipo de riso. Tem de ser inteligente, bem-disposto e espirituoso. Em última análise, se queres estabelecer uma ligação com alguém, o humor é a melhor forma, e a mais fácil.
Annie: Ser sexual é disruptivo e chama a atenção, mas também é aborrecido. As nossas clientes não usam maquilhagem para as outras pessoas. Elas usam por elas mesmas.

Quando é que nasceu esta vossa obsessão por sobrancelhas? De facto, era um mercado por explorar. Podemos dizer que foi a Benefit a criar esta necessidade?
Annie: As sobrancelhas estão no centro da Benefit desde a primeira loja. Hoje, temos 3.000 browbars em mais de 45 países e mais de 6.000 especialistas em sobrancelhas espalhados pelo mundo. Sempre vendemos produtos para sobrancelhas e sempre disponibilizámos depilações porque a minha mãe e a minha tia acreditavam, verdadeiramente, que uma sobrancelha arranjada era a melhor forma de conseguir um look rápido e natural. Em 2016, tomámos a decisão estratégica de expandir bastante a nossa oferta de produtos para sobrancelhas e assim partir em vantagem num mercado ainda por explorar.
Maggie: E funcionou. Não só por causa da qualidade dos nossos produtos, mas porque aplicámos o nosso “molho secreto” à base de “é fácil, é acessível e é divertido”. Antes de nós, a secção de sobrancelhas era muito técnica e pequena e a maioria dos consumidores não entendia os produtos. Viemos e fizemos das sobrancelhas uma questão diária.

Já nos anos 70, as sobrancelhas eram uma prioridade para as gémeas Jean e Jane © Imagem cedida pela Benefit

Quando se constrói algo baseado em ideais e convicções próprias, é difícil para outros manter o nível. Quando a Jean e Jane deixaram de estar à frente da empresa, como é que conseguiram manter a Benefit fiel aos valores das suas fundadoras?
Annie: O que elas construíram e dirigiram durante décadas é uma inspiração enorme. Olho para nós como guardiãs dos valores que elas estabeleceram, mas também como responsáveis por ajudar a Benefit a inaugurar uma nova fase da sua vida. É um trabalho muito sério, é o legado da nossa família.
Maggie: E continuamos a mostrar às mulheres que a maquilhagem deve deixá-las com um sorriso na cara, deve ser divertida e usada de forma espontânea. A marca é conhecida até hoje por proporcionar soluções de beleza rápidas, que fazem as mulheres sentir-se bem. Essa tem sido sempre a nossa inspiração para a criação de novos produtos.

Em 1999, o Grupo LVMH comprou a Benefit. Podemos fazer a mesma pergunta a esse respeito — como é que se mantêm os valores de uma marca depois de esta se tornar parte de um grupo internacional?
Annie: O início dessa parceria, em 1999, foi um ótimo momento de aprendizagem e de crescimento para ambas as partes. A Benefit conseguiu expandir-se rapidamente e a uma escala global através da rede e dos recursos do grupo. E, com a Jean e a Jane ainda no controlo, o espírito e a criatividade da Benefit acompanharam essa expansão.
Maggie: A própria LVMH orgulha-se da autenticidade, da história e do legado das maisons e das marcas que tem no seu portefólio. Daí que também eles tenham tido uma bela lição da marketing, de processo criativo e do que faz a Benefit única, dada por elas duas. Agradecemos à LVMH por nos deixar fazer o que fazemos melhor. Eles respeitam a nossa cultura singular e o nosso ADN e deixam-nos ser quem somos.

Na última década, vimos um conjunto de novas marcas de beleza chegar ao mercado. São transparentes, orgânicas, atentas à diversidade — há quem diga que são indie — e respondem diretamente às necessidades dos clientes. Em algum momento sentiram que a Benefit estava a ser ultrapassada?
Maggie: Esta indústria é tão dinâmica e rápida que é quase impossível ser-se ultrapassado por qualquer outra empresa. Além disso, os clientes são tão ávidos que nunca vão ser demais. “Jogamos bem com os outros”, por isso, adoramos que haja muitas marcas novas por aí. Mas, para mantermos a nossa vantagem, mantemos o nosso foco em algumas categorias. Não tentamos ser tudo para toda a gente.
Annie: Focamos a nossa energia nas sobrancelhas, nas máscaras, nos primers, em tons para o rosto e nos corretores. A nossa inovação, as nossas fórmulas e o storytelling nessas áreas não têm concorrência. E enquanto continuarmos focados e aplicarmos essa diversão e fluidez, o tal “molho” Benefit, ao que fazemos, vamos ter sucesso.

Annie (à esquerda) e Maggie Ford Danielson ocupam, atualmente, o cargo de embaixadoras da marca criada pela mãe e pela tia © Imagem cedida pela Benefit

Acontece o mesmo com as celebridades. Primeiro Kylie Jenner e Kim Kardashian, depois Rihanna e, mais recentemente, Lady Gaga. O mercado da beleza é grande o suficiente para todas estas investidas terem sucesso? A indústria continua a crescer?
Maggie: A indústria continuará sempre a crescer. E a Benefit está no caminho certo para esta corrida. Enquanto muitas marcas estão a aproximar-se das tendências mais populares, nós continuamos determinados em não lançar produtos baseados no que é tendência. A Benefit lança produtos que solucionam dilemas de beleza universais. Veja o nosso lançamento de sobrancelhas em 2016, a indústria nem sequer sabia que existia esta necessidade no mercado. Fomos nós a encontrá-la.
Annie: Não nos preocupamos em antecipar as tendências. Em vez disso, pomos a nossa energia em fazer os melhores produtos — o que os nossos clientes esperam de nós — e em fazê-los cada vez melhor.

Mesmo com toda esta comunidade fiel criada em torno dos valores e dos produtos da marca, quais são, hoje, os maiores desafios para a Benefit?
Maggie: Acompanhar as mudanças rápidas do consumidor. O nosso consumidor está constantemente a evoluir e ele nunca está à procura de uma única coisa, a lista é infindável.
Annie: As nossas miúdas estão, hoje mais do que nunca, em movimento. A Benefit tem de continuar a acompanhá-las, a elas e às suas necessidades de beleza.