É domingo em Vidago, tarde cinzenta, chuva miudinha e a cidade inteira parece ter-se amontoado em torno da antiga escola primária para meninas, um edifício de pedra, do século XIX. Muitos não sabem quem foi o pintor João Vieira, precursor da arte contemporânea portuguesa, fundador dos KWY, ilustre membro do grupo do Café-Gelo, pintor de letras, cenógrafo, ilustrador. Alguns saberão quem é o músico dos Ena Pá 2000 AKA Candidato Vieira AKA Lello Minsk AKA Manuel João Vieira, que anda por ali de ténis e parka como um trabalhador rural que não faz fins-de-semana. Mas todos sabem quem é António Costa, primeiro-ministro recém-eleito, antigo mareante da geringonça e é ele que querem ver. De resto, também há carros de reportagem, jornalistas de microfone e riste e muitas câmaras de filmar.

De certo ninguém esperava uma enchente daquelas, nem sequer Manuel João Vieira que há 10 anos luta por levar avante o projeto de criar uma Casa Museu que albergue algumas das muitas obras do seu pai. Uma odisseia com avanços, recuos e outros tantos momentos de desânimo, mas que acabou por se levantar como uma forma de fazer justiça à vida e obra de João Vieira. E se ficou feliz por ver lá tanta gente, inclusive o António, seu antigo colega de escola preparatória, também não deixou de reparar que a intensa cobertura jornalística do evento serviu mais para falar do primeiro-ministro e de sound bites políticos do que para falar do artista que era a razão daquilo tudo.

Temos que recuar ao ano de 1971, para percebermos como duas crianças que um dia brincaram juntas com as letras de esponja colorida de uma exposição do pintor João Vieira podem ter tido caminhos, aparentemente, tão opostos: uma tornou-se um eterno candidato à presidência de uma República catita e burlesca, o outro tornou-se primeiro-ministro da República mais turística da Europa. Apesar de tudo, António não podia perder a oportunidade de, como ele mesmo afirmou. “Pela primeira vez na vida ver Manuel João sem saber o que dizer”. Por isso foi a Vidago para o último ato público do XX Governo Constitucional.

Toy e Manuel João Vieira em Ensaio Janeiro 2018

“Continuo a dialogar com ele e a tentar perceber que partido é que eu posso tirar deste diálogo”, diz Manuel João Vieira sobre o pai

A ministra da Cultura Graça Fonseca também esteve presente, bem como os autarcas da região. Um enorme aparato político tão rápido a chegar como a partir e que afinal talvez não chegue para devolver à obra de João Vieira a importância que ela tem na cultura portuguesa. Por isso, vale a pena ler o belíssimo catálogo da Casa Museu, com textos de Manuel João Vieira, do psicanalista José Gabriel Pereira Bastos, do artista plástico Pedro Proença, do crítico de arte e curador João Fernandes e ainda uma conversa entre Manuel João e o escritor Helder Macedo, amigo do pintor desde os tempos do café Gelo.

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O meu pai foi apaixonado pela Pintura, pelas formas e discursos plásticos e teóricos do seu tempo (e do nosso), pelas formas e símbolos da Poesia e o seu potencial encantatório, pela virgindade meretricial e matricial das palavras e das formas, pelas próprias palavras como elementos, signos, tema e objeto (…) O passo mais significativo nessa busca de uma nova forma de se exprimir, deu-se com os primeiros trabalhos em que figurou sinais do alfabeto e palavras. Os primeiros exercícios assumem a forma
de uma transição ou transfiguração em relação às formas anteriores. Os sinais que foram de figura humana ou outra metamorfoseiam-se em símbolos de um alfabeto perdido, ou para ser mais preciso, encontrado. A esta descoberta entusiástica estão naturalmente ligadas a sua paixão pela poesia e convívio constante com poetas como Herberto Helder, José Manuel Simões, Helder Macedo, Ana Haterly, Manuel de Castro, Mario Cesariny, entre muitos outros.”

[Manuel João Vieira, Catálogo da Casa Museu]

O Observador falou com Manuel João Vieira, em Lisboa, quatro dias depois da inauguração da Casa Museu. Uma rara entrevista a solo, sem os seus muitos desdobramentos e pseudónimos, acompanhada apenas de um carioca de limão bebido com a enorme seriedade que afinal habita o artista irreverente.

Passou os últimos 10 anos a tentar pôr de pé a Casa Museu João Vieira, uma homenagem ao seu pai, o pintor João Vieira, que foi inaugurada há quatro dias em Vidago. No fundo, a tornar real uma vontade dele.
O meu pai já tinha a ideia de fazer uma fundação, uma coisa maior onde ele pudesse expor as suas obras de grandes dimensões. Ele tinha pensado na estação de caminhos-de-ferro de Vidago. Quando morreu, em 2009, quisemos realizar a exposição que ele andava a preparar, em Amarante, houve ainda uma outra exposição em Chaves onde ficou conversada com os autarcas a hipótese de uma casa-museu em Vidago. Vimos muitas casas mas nunca se concretizou, até que surgiu a hipótese de ficar com o edifício da escola de meninas que, curiosamente, foi o sitio onde ele nasceu porque os meus avós eram professores primários. Embora não seja um espaço com capacidade para as obras maiores, é mais modesto, mas era viável. Eu gostaria que tivesse sido um espaço maior à semelhança da casa museu do Nadir Afonso. Aqui só colocamos 48 obras, ficou de fora uma certa quantidade, muita coisa.

As famosas letras multidensionais de João Vieira aqui a partir do poema de Herberto Helder e que está agora na Casa-Museu, em Vidago

Essas obras representam apenas uma pequena parte do espolio do João Vieira?
Estas obras vieram de coleções particulares que nos foram dadas. Há uma obra que a minha mãe nos ofereceu, há apenas dois meses. É um quadro importante e que foi inesperado. Ainda comprei mais uma peça. O que acontecerá é que haverá algumas que ficam em exposições temporárias, alternando com outros artistas que queremos convidar para exporem aqui. Mas há muitas outras facetas da obra dele que queremos mostrar, como a ilustração, a cenografia, os desenhos preparativos para os vitrais da Sé de Vila Real.

Foi fácil angariar apoios, nomeadamente políticos, para este projeto?
Houve alguma perceção da importância deste projeto, em Vidago e em Chaves. Os protocolos foram mais complicados mas conseguimos um regime de comodato, ou seja, de empréstimo do espaço por cinco anos e depois renovável.

Depois de 10 anos a lutar por esta casa museu, como olha agora para o resultado conseguido?
Acho que está muito melhor do que eu estaria à espera, porque tivemos que readaptar toda a casa, fazer obras, paredes móveis para algumas peças maiores. Isto é subjetivo claro, mas tendo uma montagem expositiva bastante convencional permite que cada obra seja lida por si e simultaneamente no conjunto das outras obras. Conseguimos organizar os materiais de forma a dar uma perspetiva geral da obra dele. Ele teria feito com certeza melhor…

Dizia na inauguração que o grande desafio agora é manter esta casa Museu viva e dinâmica e atrair pessoas a Vidago.
O meu pai tinha um grande gosto na intervenção cultural e em ajudar na aproximação da arte com as pessoas da região, portanto aquilo não pode ser uma casa-museu mumificada, mas quando se fala em grande arte ela não corre o risco de murchar.

Dez anos depois da sua morte, que papel tem hoje João Vieira na história da arte contemporânea em Portugal? Dir-se-ia que está um pouco esquecido…
Houve há uns meses uma exposição nos Artistas Unidos organizada pelo Jorge Silva Melo, com seis pinturas de grandes dimensões dedicadas às várias artes, mas de facto foi a única coisa relevante que aconteceu em 10 anos. Ficou lindíssimo, iluminado com projetores de teatro, como se cada quadro fosse uma personagem, o que nos permitiu ver a dimensão cenográfica do trabalho do João Vieira. Depois tentei estabelecer contactos com a Gulbenkian onde ele nunca teve uma grande mostra. Mas continuo a achar que era muito importante que houvesse uma retrospetiva dele aqui na Fundação, como já foi feita em Serralves, em 2002. Era importante que Lisboa pudesse perceber a dimensão da obra do meu pai.

O meio artístico e cultural ainda reconhece a importância de João Vieira?
No meios curatoriais não é um tema que esteja na moda. Os temas que estão na moda na arte contemporânea, ela própria sempre bastante sujeita àquilo que se passa nos seus centros difusores, são temas relacionados com minorias sexuais e étnicas, identidades de género e temas políticos ou sociais. E, neste momento, parece-me que os temas se tornaram mesmo mais importantes que as obras em si. Aquilo que se chama “a dimensão crítica” dos objetos é hoje mais importante que os próprios objetos, que são já feitos para responder a essa moda. E esta que é a geração do meu pai, que foi a primeira geração da arte contemporânea em Portugal, não está a ser revista, ou melhor, só estão a ser revistos alguns artistas como a Helena Almeida ou a Paula Rego, especialmente mulheres, cuja obra responde aos tais temas da moda.

Obviamente, sempre existiu o discurso académico e o discurso do poder. A única diferença é que o discurso académico de hoje é a vanguarda de antigamente. A vanguarda tornou-se numa academia e o espírito experimental tornou-se ele próprio um dogma. O que é engraçado; existe uma arte contemporânea que tem que ver com determinadas atitudes, determinadas técnicas e determinados contextos como aqueles em que participou o meu pai. E existe uma arte moderna mais ligada ao subjetivismo do autor na qual ele também participou. Portanto o João Vieira tanto foi um artista dentro do paradigma da arte Contemporânea como dentro do paradigma da arte Moderna. Nele existe aquele experimentalismo típico do início dos anos 60/70, dos happenings, das instalações, das performances, do KWY e da Alternativa 0. Por outro lado, existe um grande amor à pintura, um grande cosmopolitismo e, ao mesmo tempo, uma busca daquilo que serão as raízes da pintura portuguesa. Ele esteve sempre com um pé lá fora e outro cá dentro.

Os rituais arcaicos tornaram-se um dos temas de João Vieira, criando imagens que nos remetem para as nossas heranças milenares usando materiais novos como o poliuretano

Resumindo: João Vieira não está na moda neste momento.
Não. Acho que não está. Definitivamente o que me parece é que nestes 10 anos, desde a sua morte, não aconteceu absolutamente nada. É um facto. Não sou crítico de arte, mas acho que a qualidade, a pertinência do trabalho do meu pai estão sub-representadas no contexto da arte portuguesa moderna e contemporânea. É um disparate, porque já chegámos a um ponto em que compreendemos que tudo o que é moda é interessante mas tem os seus limites e querer organizar uma História da Arte em relação a modas e coisas passageiras não é propriamente a coisa mais inteligente do mundo. Também sinto que existe uma falta de organização da inteligência das artes plásticas no que respeita ao estudo e à proteção dos artistas que vão desaparecendo. Tudo se concentra em torno dos novos artistas e do que se está a fazer agora, é desproporcional.

É a ideia de que o que é novo é bom só porque é novo?
Não é só por ser novo. O que acontece é que neste momento a história da moda e a história da arte contemporânea então entrelaçadas com aquilo que é o sistema de mercantil das obras. Cada vez mais o mercado de arte controla a produção de arte. Se calhar estou enganado… Depois há o peso que têm as atitudes pessoais dos artistas, e o meu pai não era propriamente um lambe-botas. Gostava de dizer o que realmente pensava e isso pode não estar a ajudá-lo neste momento, porque em Portugal as pessoas são muito sensíveis às relações pessoais e ele poderá não ter cultivado as melhores relações com algumas pessoas.

Como era a vossa relação, sendo que acabou por se tornar um artista plástico como ele?
Durante muitos anos não éramos próximos. Só vivi com ele até aos dois anos de idade. Via-o como mais um dos tios. Só já na adolescência me aproximei mais dele, aí eu já tinha a banda desenhada como o grande projeto de vida. Até publiquei, aos 17 anos, umas coisas na revista Tintim, a adaptação de um conto do Manuel da Fonseca.  Entretanto fiz um curso de desenho com ele na Sociedade Nacional das Belas Artes, estive para lá a desenhar modelos, mas gostei daquilo. Era colega do Pedro Proença e depois acabei por ir para as Belas Artes.

E como é que o João Vieira reagiu a essa sua escolha?
Deu-me uns tubos que tinha para lá…

Como assim, uns tubos?
Tubos de cor, uns amarelos-torrado, preto, branco, cores fundamentais. Mas eu tinha aquela ideia fixa da banda desenhada. Só já pelo segundo ano do curso descobri na pintura qualquer coisa que não tinha descoberto antes. Produzi então uns objetos que achei que não estavam mal e aí a imagem sobrepôs-se à banda desenhada. Fiz muita porcaria, desenhei quilos de papel… curiosamente, só quando comecei a sentir que estava a produzir coisas interessantes é que ele também as começou a achar interessantes. Só mais tarde, já depois do curso, é que ele me começou a dar mais apoio, conversávamos sobre pintura. Mas o caminho dele é muito pessoal, inimitável. Depois da sua morte resolvi experimentar, por exemplo, pintar à espátula e aquilo é muito difícil. Ele fazia aqueles gestos caligráficos com espátula com uma rapidez. Mas ainda chegamos a fazer juntos uma exposição de verão, em Tavira,  chamada “Dois Limões em Férias”: cada um de nós fazia uma parte do quadro e o outro acabava, quase como um cadavre esquis. Só tenho três quadros dessa nossa única colaboração.

Anos 70 em Vidago, João Vieira com o seu pai Porfírio, os três filhos e sobrinhos. Manuel João Vieira é o mais alto da segunda fila

Mas acaba por se tornar sobretudo um performer, como ele também foi, mas levando isso mais longe
Acho que ele achava divertido porque ambém teve os seus tempos de crooner e até chegou a gravar um disco. A musica e a pintura são impulsos diferentes. A pintura é mais solitária e eu não sou um pintor contemporâneo, sou mais “modernóantigo” e isto é uma coisa que não está nada na moda. Ia dizer que é mais terapêutica também, mas se passo muito tempo só a pintar começo a ficar totalmente maluquinho. Não programo nada, cada coisa que faço é um solo e o meu pai era muito mais articulado. Ele conseguia fazer uma exposição onde se poderia encontrar um tema, coisa que eu nunca fiz. Portanto, o meu experimentalismo, como aquele que eu fiz no projeto Orgasmo Carlos, ou no projeto Candidato Vieira, é completamente diferente do dele, do meu meu pai.

Como posso, simultaneamente, ser “absolutamente moderno” e admirar tantas pinturas antigas? Que quer isso dizer? Procurando respostas para estas perguntas, resolvi pintar à minha “maneira” pinturas antigas que me tocaram profundamente ao longo da minha vida. Para isso, observei-as tentando separar o essencial do acessório, procurando a verdade dessas pinturas, e ao mesmo tempo a verdade da minha própria pintura.”

[João Vieira, numa entrevista citada no Catálogo da Casa-museu]

Há quem considere o Manuel João como o mais legítimo herdeiro do espírito surrealista do Café-Gelo, pelo humor, pela ousadia, pelo excesso. Isto faz sentido para si?
Eles eram pessoas muitíssimo mais sérias e focadas do que eu algum dia fui ou serei. O contexto também era outro, eles tiveram vidas muito difíceis. Sinto-me muito mais infantil em tudo aquilo que faço e tento reagir com os meus trabalhos contra esse infantilismo, mas aquilo que é infantil está lá sempre. Agora, eu sempre achei o Surrealismo muito interessante, até porque quando temos esse motor (o Surrealismo) podemos ser mais preguiçosos, isto é: porque fazer uma associação automática é mais rápida do que uma tentativa conceptual elaborada de fazer uma associação de ideias. Portanto, no sentido em que sou muito preguiçoso, sou muito surrealista.

Costuma comparar-se com ele?
Posso comparar-me, mas é uma coisa desconcertante, porque são discursos muito diferentes. Se eu fizer essa comparação é sempre essa diferença que salta à vista. Existem obras do meu pai de que eu gosto muitíssimo, mas também existem outros pintores de que eu gosto muitíssimo. A pintura do meu pai exige um trabalho do espectador, exigem uma decifração, pedem a quem olha que complete o sentido da obra. Depois, ele tinha uma relação com a poesia que é fundamental e primordial. Claro que quando era pequeno e o via pintar o alfabeto também me punha a pintar o alfabeto

Continua a falar com ele?
Sim, acho que falo porque ele era uma presença muito forte na minha vida e há uma presença plástica das coisas dele que é bastante forte no meu museu imaginário. Sim, continuo a dialogar com ele e a tentar perceber que partido é que eu posso tirar deste diálogo.