O contraste não podia ser maior. Às 23h de Londres (e Lisboa), meia-noite em Bruxelas, houve receções muito diferentes ao Brexit, que se consumou, três anos e meio depois de hesitações e tropeções — já para não falar de décadas de debate interno no Reino Unido, eternamente consumido pela divisão dentro do Partido Conservador entre eurocéticos e euro-entusiastas. Na capital britânica, mesmo em frente ao Parlamento de Westminster, centenas gritaram, agitaram bandeiras e assistiram a um pequeno espetáculo de pirotecnia por trás de um ecrã eletrónico que exclamava “We’re Out!” (Estamos Fora!). Em Bruxelas, no coração da União, um pequeno grupo reuniu-se para cantar o Auld Lang Syne (a canção que na versão portuguesa começa com “Chegou a hora do adeus…”). As cabeças baixas e o tom solene deixavam claro que aqui não se celebrava nada, lamentava-se antes algo que se perdeu.

O Reino Unido passou, de imediato, a estar oficialmente fora da União Europeia (UE). Já não tem eurodeputados, nem comissários europeus, nem juízes no Tribunal de Justiça Europeu. Não contribui para as decisões conjuntas — apesar de ainda contribuir para o orçamento comunitário a longo-prazo, que termina apenas em 2021, fruto da sua duração de sete anos — e pode começar a delinear estratégias para um futuro sem constrangimentos vindos de Bruxelas. Mas também tem pela frente um ano duríssimo, em que terá de negociar com os europeus um acordo para a nova relação entre as duas partes, que tem de incluir um Acordo de Livre Comércio que satisfaça as exigências de ambos. Com a dor de cabeça acrescida de tal nunca ter sido antes tentado por um ex-membro.

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No discurso que fez perante a nação, gravado muito antes das 22h a que foi emitido, Boris Johnson tentou manter um tom sóbrio, não ostracizando aqueles que desejavam permanecer na Europa e ensaiando o ar de estadista: “Para muitos, este é um momento incrível de esperança, um momento que pensavam que nunca ia chegar. E há muitos que, é claro, têm um sentimento de ansiedade e de perda.”

E há ainda um terceiro grupo — talvez o maior — que começou a temer que toda a trapalhada política nunca tivesse fim. Entendo todos esses sentimentos e o nosso trabalho enquanto governo — o meu trabalho — é unir este país e levar-nos para a frente”, acrescentou o primeiro-ministro britânico.

Dentro de portas, contudo, o primeiro-ministro terá celebrado mais efusivamente na receção privada que deu aos colegas que trabalharam consigo no Brexit, no número 10 de Downing Street. O Guardian fala em produtos britânicos ao jantar: um assado típico de carne de vaca, o acompanhamento conhecido como yorkshire pudding e um queijo azul britânico. Às 23h, a saída terá sido festejada com espumante — inglês, é claro.

Em Bruxelas, as instâncias oficiais também optaram pela sobriedade em público. Não houve grandes discursos depois da meia-noite, com um simples comunicado de Josep Borrell (o novo representante da política externa europeia) a desejar que se mantenha a cooperação entre as duas partes. Antes disso, o dia tinha sido ocupado pelo arriar das várias bandeiras britânicas espalhadas pelas várias instituições europeias — sem pompa e circunstância, sem cerimónia e sem aviso, as Union Jack foram sendo retiradas em momentos aleatórios ao longo da tarde, captados pelas câmaras dos smartphones dos jornalistas que passavam por acaso nos locais.

Três anos e meio de impasse, mas recheados de peripécias

Talvez a falta de entusiasmo ou comoção públicas por parte dos dirigentes se deva ao tempo que demorámos a chegar até aqui. Depois de anos a flirtar com a ideia, o Partido Conservador britânico enfrentou de frente o fantasma do euroceticismo e o primeiro-ministro David Cameron convocou um referendo ao Brexit, na esperança de arrumar de vez o assunto. A jogada correu-lhe mal: 52% votaram pela saída, num resultado à justa, mas impossível de ignorar. Cameron demitiu-se no dia seguinte, deixando a caixa de Pandora aberta atrás de si. Nos três anos seguintes, contudo, não passaria mal: soube-se esta sexta-feira que fez quase dois milhões de euros desde que abandonou o cargo de primeiro-ministro.

Seguiram-se três anos e meio de quase farsa, com o Reino Unido com um pé fora e outro ainda firmemente dentro. Theresa May foi a senhora que se seguiu, com a tarefa ingrata de lidar com o dia seguinte. Decidiu ativar o Artigo 50.º para a saída quando ainda não tinha um Acordo de Saída concluído e a decisão também lhe correu mal. Os seus deputados puxaram-lhe repetidamente o tapete e chumbaram a sua proposta de acordo não uma, mas três vezes. Antes disso, alguns dos seus ministros (onde se incluía um ambicioso Boris Johnson) já tinham matado a sua primeira proposta, o acordo de Chequers, à nascença.

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A demissão chegou, mas só depois de o país ter pedido um adiamento do Brexit (o primeiro de dois). A resposta da UE veio depois de algum suspense, alimentado sobretudo por Emmanuel Macron, em França, que parecia assumir o papel de “polícia mau” numa dupla com Angela Merkel, chanceler alemã, que assumia o cargo de “polícia bom”. 31 de outubro de 2019 passou a ser a nova data. Com a saída de cena de uma Theresa May esgotada, chegou a vez de Boris Johnson — que, na verdade, chegou, viu e venceu.

Menos de seis meses depois de ter chegado ao cargo de primeiro-ministro, Boris conseguiu um Acordo de Saída com a UE, levou o país a eleições antecipadas e ganhou uma maioria que não se via desde Margaret Thatcher. Aprovou o Acordo com facilidade e vê agora o Brexit a concretizar-se a 31 de janeiro de 2020. Mas o seu currículo não fica sem mácula: falhou a sua promessa de “morrer numa valeta” em vez de pedir um adiamento (foi forçado a isso em setembro de 2019), viu a sua decisão de suspender o Parlamento ser considerada ilegal pelo Supremo Tribunal e alimentou uma retórica dura, que levou a que classificasse como “tretas” as ameaças feitas à vida de alguns deputados.

O Reino Unido está fora. E agora?

A sentença sobre qual será o verdadeiro legado de Boris dependerá do que acontecer ao longo deste ano de 2020. Britânicos e europeus têm agora de negociar o Acordo sobre a sua relação futura, cujos pormenores são bem mais complexos de acertar. Sobretudo ao nível de um acordo de comércio-livre, onde se antevê grandes discussões sobre as orientações regulatórias europeias, que Bruxelas exige manter em troca das desejadas tarifas zero por parte de Londres.

Boris Johnson está otimista: “A coisa mais importante a dizer esta noite é que isto não é um fim, mas um começo. Este é o momento em que a aurora rompe e a cortina sobe, num novo ato da nossa peça de teatro nacional”, afirmou no seu discurso pré-gravado. Pela frente, contudo, tem uma série de desafios que podem levar o país a uma situação semelhante à de um hard Brexit, no caso de as negociações falharem. Já para não falar da possível desagregação do Reino, com Nicola Sturgeon a dar o tiro de partida para um novo referendo à independência da Escócia esta manhã, num anúncio ao país.

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A tudo isto, soma-se o risco do regresso da turbulência na Irlanda do Norte, sempre a espreitar caso a solução encontrada para evitar uma fronteira física na região não satisfaça todos. Os sinais dos líderes locais, que estão todos desagradados com a solução encontrada, foram claros: a unionista Arlene Foster esteve em Dublin para conversar com o governo da Irlanda; a nacionalista Mary Lou McDonald participou numa ação de protesto e previu que possa haver um referendo à reunificação das Irlandas no prazo de cinco anos.

Boris Johnson, que ao longo da sua vida soube sempre ocupar o palco por inteiro quando a cortina sobe, acha-se à altura do desafio. Por agora, há uma certeza apenas: com um Reino Unido fora da UE, impedido de regressar — a não ser que volte a contemplar o altamente improvável cenário de uma recandidatura — , nada voltará a ser como dantes. Os britânicos saíram do clube europeu, algo que nunca outro país ousou fazer antes deles. O tempo dirá se, nesta noite, foram mais acertados os gritos de júbilo ou as lágrimas. Ou talvez não. Talvez tudo dependa mesmo, como dependia no longínquo dia do referendo de junho de 2016, do ponto de vista de onde se olha.

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