Título: Os Anos
Autor: Annie Ernaux
Editora: Livros do Brasil
Ano da Edição: fevereiro de 2020
Páginas: 200
Preço: 16,60€

O romance foi publicado em francês em 2008, mas voltou a receber atenção no ano passado, quando esteve nomeado para o Booker Prize International

É nas epopeias que encontramos as grandes narrativas nacionais, onde a suposta essência de um povo está espelhada. Lá são narradas as origens e aventuras heroicas de toda uma nação, liderada por um herói que reúne em si um conjunto de símbolos e imagens que o transforma na metáfora perfeita do ideal nacional. É uma narrativa profundamente mítica e positiva, onde o comum e banal não entram. Os Anos, de Annie Ernaux, sendo também a história de um povo, coloca-se num plano completamente diferente. Já não temos elevação, mas sim o concreto. O herói passa a heroína, mas esta não se destaca dos outros, é sim exemplo típico de uma sociedade. Da grandiosidade do episódio mítico passamos à pacatez da existência.

Este livro começa algures em meados dos anos 40 do século XX, imediatamente após o fim da Segunda Guerra Mundial, levando-nos até à primeira década do século XXI, numa viagem de cerca de 65 anos. Acompanhamos duas histórias que, mais do que paralelas, se intercruzam e são indissociáveis da outra. A primeira é a de uma pequena criança, que se vai transformando em jovem e depois mulher, alguém sem nome, mas que rapidamente associamos à própria autora. Estamos perante uma autobiografia velada. É através desta mulher, da sua perspetiva, que vamos acompanhando a segunda história, a de França do pós-guerra e a sua evolução até à contemporaneidade.

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Ernaux coloca estas duas personagens, a mulher e França, em pé de igualdade. A França que se reergueu das cinzas após a Segunda Guerra Mundial pode comparar-se à menina que serenamente vai ouvindo os mais velhos, à mesa do almoço, a contarem histórias sobre a guerra. A própria sociedade parecia estar em pausa, um momento de descanso logo a seguir a um momento traumático. “Apesar de tudo, crescia-se tranquilamente, «feliz por estar vivo e ver com clareza»”, diz-nos Ernaux. Esta felicidade por se estar vivo refletia-se nos grandes almoços, que terminavam com cantigas e histórias do antigamente, colocando os anos anteriores num estado fora do tempo histórico, tal e qual como era para essa criança.

A progressiva modernização de França entra em choque com a sua forte veia católica e conservadora, especialmente nos espaços rurais. “Por baixo do ideal e dos olhos límpidos estendia-se, era sabido, um território informe, viscoso, que continha outras palavras e objetos, imagens e comportamentos”: o sexo torna-se muito mais presente na sociedade, e por isso muito mais atacado. É durante este confronto, que ainda não se pode chamar de geracional, que a menina se vai transformar em jovem adolescente, situação já de si repleta de conflitos pessoais e que se complica no meio deste ambiente. Num tom algures entre o intimista e a análise social, os comportamentos desta jovem nesta época podem ser atribuídos à generalidade dos adolescentes.

O Maio de 68 é um evento fulcral para a vida desta jovem, assim como o foi para muitos outros. “1968 era o primeiro ano do mundo.” Enquanto em Portugal ainda lutávamos por uma vida justa, digna e democrática, em França debatia-se e vivia-se livremente. Todos os conceitos conservadores e limitadores foram completamente destruídos, pelo menos no seio da comunidade jovem mais instruída. Dá-se a revolução sexual. O coletivo volta a ser importante e, por isso, a própria narrativa Ernaux torna-se muito menos pessoal.

No entanto, o fulgor revolucionário não é eterno, e vai-se esbatendo. A evolução tecnológica cada vez mais rápida traz o início da era do consumo, e a novidade torna-se rotina. A jovem adulta vai-se transformando, torna-se mãe, e apesar de nunca deixar de ter um espírito revolucionário (vota sempre à esquerda), a vida assenta. A novidade torna-se rotina, e tanto ela como França entram em letargia. Será só já no fim do século, com os sucessivos ataques terroristas dos anos 90 em França e o 11 de Setembro nos EUA, que haverá de novo um sentimento de sociedade em mudança.

Sendo este um livro que recorda o passado, é também uma reflexão sobre memória, a sua natureza, a forma como é reproduzida, e de que maneira molda a visão que temos de nós próprios. Ao longo do livro existe uma luta entre a memória que acaba por desaparecer e aquela que, sem praticamente darmos por isso, lutamos por manter. A primeira e última frases do livro resumem bem este sentimento. “Todas as imagens irão desaparecer”, “Salvar qualquer coisa do tempo onde não voltaremos a estar”. A implacabilidade do tempo, que eventualmente tudo faz esquecer, encontra resistência na nossa vontade de nos identificarmos, de sabermos quem somos.

Para a mulher de Os Anos, ou seja, para a própria Annie Ernaux, a vida é feita naquele limbo, entre o afastar-se do passado, de forma a tornar-se indivíduo, e o ir a encontro das memórias que nos asseguram de quem somos. A refeição em família é talvez o elemento essencial relativamente à memória. É a tradição que se mantém, mas que se vai tornando cada vez mais diferente à medida que os anos passam. Nunca poderá voltar a ser o que era quando a mulher era criança, com as histórias sobre a Segunda Guerra Mundial, mas será sempre um local de encontro familiar.

Também para a sociedade francesa a questão da memória é importante. Após a guerra, França viu-se obrigada a reinventar-se, a recriar uma identidade. À medida que os anos vão passando, essa identidade vai-se tornando cada vez mais distante de um passado longínquo, mas que, no entanto, vai sempre retornando sobre uma forma ou outra.

Nesta espécie de autobiografia, a memória também se faz através da fotografia e do vídeo, permanecendo intacta. Num trabalho intermedial, a imagem torna-se texto para voltar a transformar-se em imagem na mente do leitor. Estas fotografias e vídeos contam uma história possível da protagonista, refletindo também sobre o que consideramos ser importante na altura em que se tira a foto, e aquilo que de facto, mais tarde, vimos a reconhecer como realmente importante.

Annie Ernaux desenha, assim, um retrato de si mesma que se confunde com o retrato da França que viveu. A autora consegue manter o equilíbrio entre o exagero da epopeia e a distância objetiva da crónica histórica. Falando do seu passado, fala do de todos, ou pelo menos daqueles que nele se reveem. Este livro vem dizer que acima de um “eu” haverá sempre um “nós” do qual somos indissociáveis.